sábado, 6 de outubro de 2018

O CANTO DO PIAGA, de Gonçalves Dias










Ó Guerreiros da Taba sagrada,

Ó Guerreiros da Tribo Tupi,

Falam Deuses nos cantos do Piaga,

Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.





Esta noite — era a lua já morta —

Anhangá me vedava sonhar;

Eis na horrível caverna, que habito,

Rouca voz começou-me a chamar.





Abro os olhos, inquieto, medroso,

Manitôs! que prodígios que vi!

Arde o pau de resina fumosa,

Não fui eu, não fui eu, que o acendi!





Eis rebenta a meus pés um fantasma,

Um fantasma d'imensa extensão;

Liso crânio repousa a meu lado,

Feia cobra se enrosca no chão.





O meu sangue gelou-se nas veias,

Todo inteiro — ossos, carnes — tremi,

Frio horror me coou pelos membros

Frio vento no rosto senti.





Era feio, medonho, tremendo,

Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.

Falam Deuses nos cantos do Piaga,

Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!







II 





Por que dormes, ó Piaga divino?

Começou-me a Visão a falar,

Por que dormes? O sacro instrumento

De per si já começa a vibrar.





Tu não viste nos céus um negrume

Toda a face do sol ofuscar;

Não ouviste a coruja, de dia,

Seus estrídulos torva soltar?





Tu não viste dos bosques a coma

Sem aragem — vergar-se e gemer,

Nem a lua de fogo entre nuvens,

Qual em vestes de sangue, nascer?





E tu dormes, ó Piaga divino!

E Anhangá te proíbe sonhar!

E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,

E não podes augúrios cantar?!





Ouve o anúncio do horrendo fantasma,

Ouve os sons do fiel Maracá;

Manitôs já fugiram da Taba!

Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá!







III 





Pelas ondas do mar sem limites

Basta selva, sem folhas, e vem;

Hartos troncos, robustos, gigantes;

Vossas matas tais monstros contêm.





Traz embira dos cimos pendente

—Brenha espessa de vário cipó —

Dessas brenhas contêm vossas matas,

Tais e quais, mas com folhas; é só!





Negro monstro os sustenta por baixo,

Brancas asas abrindo ao tufão,

Como um bando de cândidas garças,

Que nos ares pairando —lá vão.





Oh! quem foi das entranhas das águas,

O marinho arcabouço arrancar?

Nossas terras demanda, fareja ...

Esse monstro. . . — o que vem cá buscar?





Não sabeis o que o monstro procura?

Não sabeis a que vem, o que quer?

Vem matar vossos bravos guerreiros,

Vem roubar-vos a filha, a mulher!





Vem trazer-vos crueza, impiedade —

Dons cruéis do cruel Anhangá;

Vem quebrar-vos a maça valente,

Profanar Manitôs, Maracá.





Vem trazer-vos algemas pesadas,

Com que a tribo Tupi vai gemer;

Hão de os velhos servirem de escravos

Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!





Fugireis procurando um asilo,

Triste asilo por ínvio sertão;

Anhangá de prazer há de rir-se.

Vendo os vossos quão poucos serão.





Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,

Susta as iras do fero Anhangá.

Manitôs já fugiram da Taba,

Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá!





(Ilustração: foto de a. não identificado)



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