quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A DERRADEIRA CARTA DO ESCRIVÃO DO REI, de Luis Fernando Veríssimo









Pero Vaz de Caminha, o primeiro repórter no Brasil, não teve tempo de escrever tudo o que gostaria. Então, alguém tomou seu lugar.

Imaginem uma segunda carta de Pero Vaz de Caminha ao rei dom Manuel. Ela teria sido escrita em Calicute, na costa ocidental da Índia, onde a frota de Cabral ancorou em 13 de setembro de 1500, depois do "achamento" do que ainda pensavam ser uma ilha, que chamaram de Vera Cruz. Às vésperas de morrer nas mãos dos indianos, junto com outros portugueses, Caminha fica sabendo que sua primeira carta, com o pedido para que o genro fosse trazido de volta do desterro, nem chegou às mãos do rei. Segue-se um trecho da missiva desconhecida até hoje:

Dos infortúnios da nossa viagem da terra nova, de onde saíram 11 naus, a Calicute, onde chegaram cinco, sabe ou ainda não sabe Vossa Alteza, mas não serei eu a atormentá-Lo como os ventos do Cabo Tenebroso nos atormentaram, pois muitas vezes mais cruel é o contar do que o acontecido. Saiba apenas que se muitos mareantes afundaram, afundaram com Vossa Alteza no pensamento, e que os peixes se banquetearam de boa fibra portuguesa. Bartolomeu Dias, sabe ou ainda não sabe Vossa Alteza, deu segundo turno à Natureza que um dia humilhou, e desta vez perdeu. Naufragou ao Cabo que deu nome, o da Boa Esperança. Seu nobre coração repousa entre os corais do fundo, e não brilha menos.

Viajávamos ainda ao longo da terra nova, antes das tormentas, quando uma noite encontrei o Capitão-mor, sozinho, barba ao vento, na amurada. Olhava para a silhueta negra da costa e sua própria silhueta era outro silêncio negro, até falar. "É grande a ilha, Caminha", disse-me ele, embora não tivesse dado sinal de me distinguir do breu. E eu disse: "É gigantesca a ilha, Capitão", e ele grunhiu um assentimento. Viajávamos já léguas para o sul sob as estrelas cruzadas e ainda não tínhamos encontrado o fim do gigante. "Ou não é ilha", disse o Capitão, e eu grunhi nem sim nem não.

O Capitão bateu com os dois punhos no peito e disse que sentia um continente por trás da silhueta negra que olhávamos. Sentia outro mundo, e sentia-o no peito. Disse: "Talvez mundo demais", e meu grunhido foi ainda mais precavido. E disse o Capitão: "Penso comigo que despertamos alguma coisa. Penso comigo, Caminha, que mexemos em alguma coisa demais". Grunhi de novo. E perguntei: "Quanto mais mundo haverá neste Ocidente?" E disse o Capitão que, quanto mais mundo houvesse, não faltariam portugueses para lhe dar nome. E passamos o resto do encontro em louvação a Portugal e a Vossa Alteza.

Em outro encontro na amurada, em outra noite, contei ao Capitão meu pensamento, que não tive tempo de incluir na carta para Vossa Alteza que seguiu na nau dos mantimentos, para o ingrato esquecimento. Pensei que o gentio pardo da ilha talvez não fossem cabaças vãs que receberiam a fé cristã como água, mas que continham outra devoção que a água do Senhor lavaria. Que nelas não haveria um vazio a se encher com alma, mas antes se trocaria uma alma por outra, como água ruim se troca por boa, ou borra por vinho novo. Pois não era só a inocência dos bichos que ali existia, antes dos portugueses e da Santa Cruz, e sim um povo e suas crenças. Que teriam pensado os pardos, ouvindo o latim das nossas missas? Que há séculos falavam com Deus na língua errada, e por isso tinham nada, enquanto os portugueses tinham camisas de linho, grandes barcos e grandes barbas, porque Deus os entendia.

Disse o Capitão, a silhueta sábia, que o que se olha e o que se vê são coisas diferentes, pois um olha as estrelas e vê um caranguejo e outro olha e vê os lampiões dos pescadores num mar noturno, e o que parecia inveja seria ira guerreira. Pois tínhamos desarrumado alguma coisa entre eles, pois tínhamos mexido em alguma coisa em suas vidas e suas mentes selvagens. E que o que diziam e não entendíamos era que nos queriam longe da sua terra, com nossa Cruz, nossas barbas e nossa maldita outra língua. E disse mais o Capitão que o gentio pardo nos queria longe como a uma doença, e quem poderia dizer se estavam certos? "A Europa é uma doença, Caminha?", perguntou o Capitão, e mal o entendi também. "Bendita doença, Capitão, que leva Cristo e traz gengibre." Foi a vez dele grunhir.

No nosso terceiro encontro na amurada, já em mar alto, o Capitão disse que olhar e ver eram tão diferentes que quem olhasse nossa chegada à ilha dos papagaios não saberia se naquilo via intenção ou acaso. Perguntei se Vossa Alteza e o Capitão já sabiam da existência da ilha, se não das suas gentes sem panos, ou se o acaso e o mau cálculo para lá nos tinham levado, mas quando ele ia responder ouviu-se um grito do vigia, "Cometa, cometa", e olhamos o céu indicado, e saíram os homens do seu recolhimento e olharam o céu indicado. E todos vimos a mesma coisa, uma estrela com uma longa cauda azul, e ninguém viu o mau agouro.

Não mais encontrei o Capitão na amurada, nas dez noites em que o cometa nos acompanhou. Depois começou a tormenta que nos levou tantas almas, e de que sabe ou não sabe Vossa Alteza. E da nossa última noite na amurada guardei do Capitão resposta à minha pergunta sobre a terra à qual nos levara desígnio ou acaso. O que tínhamos lá começado, depois de lhe dar o nome? E disse o Capitão: "Em 500 anos saberemos".





(Ilustração: descobrimento do Brasil – Oscar Pereira da Silva)



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