domingo, 30 de junho de 2019

OS PRAZERES DO ÓPIO, de Thomas De Quincey





Faz tanto tempo que tomei ópio pela primeira vez que, se tivesse sido um acontecimento insignificante na minha vida, já teria esquecido a data. Mas acontecimentos decisivos não são para ser esquecidos, e, a partir de circunstâncias a ele ligadas, deve ter ocorrido durante o outono de 1804. Nessa época eu estava em Londres por curto tempo após ter ingressado na universidade. Meu primeiro contato com o ópio aconteceu da seguinte maneira: 

Desde minha infância, acostumei-me a lavar a cabeça em água fria pelo menos uma vez por dia. Tendo sido atacado repentinamente por uma dor de dentes, que logo atribuí a alguma nevralgia que a falta dessa prática havia causado, pulei da cama, enfiei a cabeça em uma bacia de água fria, e com os cabelos ainda molhados voltei a dormir. Na manhã seguinte, nem é preciso dizer, acordei com dores reumáticas excruciantes na cabeça e no rosto, das quais não tive o menor alívio durante vinte dias. No vigésimo primeiro dia, acho que deveria ser isso mesmo e creio que era um domingo, saí pelas ruas, mais para fugir, se possível, das minhas dores, do que com um propósito determinado. Casualmente encontrei um conhecido da universidade que recomendou-me o ópio. Ópio! O terrível agente de inimagináveis prazeres e dores! Havia ouvido falar dele como de maná e ambrosia, mas nada mais além disso. Que som sem significado era essa palavra naquele tempo, e que acordes sonoros ela faz soar agora em meu coração! Que vibrações de terremoto nas minhas lembranças felizes e tristes! Voltando à narrativa, sinto uma importância mística pelos menores detalhes ligados ao lugar, ao tempo e ao homem (se é que ele era um homem) que pela primeira vez me abriram o paraíso dos comedores de ópio. Era uma tarde de domingo, chuvosa e desanimada. Há poucos espetáculos mais entediantes neste planeta do que um domingo chuvoso em Londres. Meu caminho de volta para casa deveria passar por Oxford-street, e perto do Pantheon vi uma farmácia aberta. O farmacêutico, ministro inconsciente de prazeres celestiais, como em harmonia com o domingo chuvoso, parecia insípido e estúpido, exatamente como qualquer farmacêutico mortal esperaria parecer em um domingo. E, quando pedi a tintura de ópio, serviu-me como qualquer outro homem teria feito. Além disso, devolveu-me meio pence em cobre como troco da minha moeda de um shilling, tirada de uma caixa de madeira. Contudo, apesar dessas indicações de cotidianidade, ele desde então passou a existir em minha mente como a visão beatífica de um farmacêutico imortal, mandado à Terra especialmente para nos encontrarmos. Há coisas que confirmam minhas considerações sobre ele, pois, quando voltei a Londres em seguida, tentei encontra-lo perto do Pantheon e não consegui: a mim, que não sabia seu nome (se é que ele tinha um), parecia-me que ele havia se mudado de alguma forma natural. O leitor pode pensar nele como possivelmente nada mais do que um farmacêutico sem paradeiro. Pode ser que assim seja, mas minha fé é maior: acredito que ele tenha desaparecido ou evaporado. Nenhuma de minhas lembranças mortais é superior àquela, como a hora, o lugar, e a pessoa que me pôs em contato pela primeira vez com a droga celestial. 

Chegando às minhas acomodações, pode-se imaginar que não perdi tempo algum em tomar a quantidade prescrita. Eu era evidentemente um ignorante na arte e nos mistérios do ópio, e o que tomei, tomei sob todas as desvantagens. Mas tomei, e dentro de uma hora, oh céus, que revolução! Que ascensão dos mais profundos abismos do meu espírito! Um apocalipse do mundo dentro de mim! O ter-me aliviado das minhas dores era agora insignificante diante de meus olhos: todo aspecto negativo foi tragado pela imensidade daqueles efeitos positivos que se abriram diante de mim, no abismo da alegria então repentinamente revelada. Havia encontrado uma panaceia para todos os males humanos: aqui estava o segredo da felicidade, sobre a qual os filósofos haviam discutido durante anos. A felicidade podia agora ser comprada com uma moeda e carregada no bolso do casaco: êxtases portáteis poderiam ser engarrafados e a paz de espírito poderia ser remetida em galões pela diligência do correio. Mas, falando desse modo, o leitor poderá pensar que estrou brincando. Posso assegurar, entretanto, que ninguém brincará muito tempo quando estiver mexendo com o ópio. Até seus prazeres têm um caráter grave e solene, e seu estado mais feliz não apresentará o comedor de ópio no papel do Allegro: mesmo assim ele pensa e fala como Il Penseroso[*]. Entretanto, tenho o mau costume de gracejar de vez em quando em meio à minha própria miséria e, a menos que seja atingido por sentimentos mais poderosos, temo ser culpado desta prática indecente até nestes anais de sofrimento e prazer. O leitor deve lembrar-se da minha natureza insegura a esse respeito, mas com alguma tolerância me esforçarei por ser sério, se não sonolento, como pede um assunto como o ópio, tão solene como ele realmente é e tão sonolento como é falsamente reputado. 

Inicialmente, uma palavra a respeito dos seus efeitos, pois tudo aquilo que já foi escrito sobre ópio, seja por viajantes vindos da Turquia (que podem usar seu privilégio de mentir como um direito imemorial), ou por professores de medicina escrevendo ex-cathedra – só tenho uma crítica a fazer – mentiras, mentiras, mentiras! Lembro-me agora que, ao passar por uma livraria, li estas palavras nas páginas de algum autor satírico: “Hoje em dia, estou convencido de que os jornais londrinos dizem a verdade pelo menos duas vezes por semana, isto é, às terças-feiras e aos sábados, e posso me basear nas... listas de falências”. Da mesma maneira não irei negar que algumas verdades foram enviadas para o mundo a respeito do ópio, assim como os eruditos afirmaram repetidamente que o ópio tem uma cor marrom escura, e com isso, notem, eu concordo. Disseram que é bem caro; com o que também concordo, pois em meu tempo o ópio indiano custava três guinéus a libra, e o turco, oito. Também disseram os eruditos que se você comer uma grande parte dele provavelmente morrerá, o que é particularmente desagradável para qualquer homem de hábitos regulares. Todas essas pesadas afirmações são realmente verdadeiras; não posso negá-las, e a verdade sempre foi e será recomendável. Mas, com esses três teoremas, acreditou-se que esgotamos todo o estoque de conhecimento até agora acumulado pelo homem a respeito do ópio. E, entretanto, dignos doutores, permitam-me sair a público para falar sobre o assunto. 

Inicialmente, é mais admitido do que realmente comprovado, por todos aqueles que falam do ópio, formalmente ou acidentalmente, que ele cause ou possa causar intoxicação. Agora, leitor, estejais certo de que nenhuma quantidade de ópio jamais intoxicou ou poderia ter intoxicado. Quanto à tintura de ópio (conhecida comumente como láudano), ela pode certamente intoxicar se um homem tomar grandes quantidades; mas é porque ela contém muito álcool, e não porque contenha ópio. O ópio cru, afirmo peremptoriamente, é incapaz de produzir qualquer estado físico ao menos semelhante àqueles produzidos pelo álcool, e não apenas quanto ao grau mas também quando à qualidade; não é apenas a quantidade de seus efeitos, mas a qualidade que é completamente nova. Os prazeres oferecidos pelo vinho são sempre crescentes e tendem a uma crise, depois da qual eles decaem. Quanto ao ópio, uma vez ingerido, seu efeito demora de oito a dez horas; inicialmente, roubando uma distinção técnica à medicina, é um caso de prazer agudo; depois de prazer crônico. Um é uma chama, o outro apenas um brilho permanente e imutável. Mas a principal diferença está em que, de certa maneira, o vinho perturba as funções mentais; o ópio, ao contrário (se tomado de maneira correta), acrescenta a elas as ordens mais especiais, leis e harmonia. O vinho rouba a autodeterminação, e o ópio revigora grandemente. O vinho embaça e confunde os julgamentos, além de dar um brilho antinatural e exaltar as admirações e desprezos, os amores e os ódios do bebedor. O ópio, ao contrário, dá serenidade e harmonia a todas as faculdades, ativas ou passivas; e com respeito pela índole e sentimentos morais em geral, simplesmente fornece aquele calor vital que é aprovado pelo julgamento e que provavelmente sempre acompanhou a constituição física de uma saúde antediluviana ou ancestral. Assim, por exemplo, tanto o vinho como o ópio causam uma expansão do coração e dos atos benevolentes, mas com uma sensível diferença, pois, na rápida expansão da bondade que acompanha as inebriações, há quase sempre um caráter que expõe o conteúdo de tantas afeições. Os homens trocam apertos de mão, juram fidelidade eterna e derramam lágrimas – sem que nenhum mortal saiba a razão: e a criatura sensual está claramente sobressaindo. Mas a expansão dos sentimentos benignos, causada pelo ópio, não se apresenta em um acesso febril, mas como uma saudável volta àquele estado de espírito que se segue à remoção de uma antiga dor ou irritação, um incômodo que perturbou e criou tensão entre os impulsos originalmente justos e bons do coração. A verdade é que, mesmo o vinho, até uma certa medida, e em determinados homens, geralmente tende a exaltar e sustentar o intelecto; eu mesmo, que nunca fui um grande bebedor de vinho, costumava achar que meia dúzia de copos de vinho afetava vantajosamente as minhas faculdades, deixava a consciência mais brilhante e intensa, e dava à mente um sentimento de ser ponderibus librata suis. Certamente é um absurdo dizer, usando a linguagem popular, que o homem se disfarça com o álcool, pois, ao contrário, maioria se disfarça com a sobriedade; e é quando estão bêbados (como alguns antigos cavalheiros dizem em Athenaeus) que se colocam de acordo com a verdadeira complexidade de seus caracteres, o que certamente não é o mesmo que se disfarçar. Mas, ainda, o vinho costuma levar um homem ao extremo do absurdo e da extravagância, e, depois de um certo ponto, ele com certeza evapora e dispersa as energias intelectuais, onde o ópio parece sempre compor o que estava agitando e concentrar o que estava diluído. Resumindo, um homem que está bêbado é, e sente que é, um indivíduo cuja condição apresenta a supremacia do simplesmente humano, frequentemente a parte brutal de sua natureza; mas o comedor de ópio (falo aqui daquele que não está sofrendo nenhuma doença causada por algum efeito do ópio) sente que está sob o domínio da parte mais divina de seu ser, isto é, as afeições estão em completa serenidade e acima de tudo brilha a luz do majestoso intelecto. 




(Confissões de um comedor de ópio; tradução de Ibañez Filho) 




[*] Allegro e Il Penseroso são dois poemas líricos do poeta inglês John Milton (1608-74), que descrevem os prazeres da Alegria e da Melancolia, encarada não como estado emocional de abatimento ou tristeza, mas estado psicológico de reflexão contemplativa. (Nota do blog) 



(Ilustração: Aquira Kusume - opium eater)



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