sábado, 24 de março de 2018

PLEBISCITO, de Arthur Azevedo











A cena passa-se em 1890. 

A família está toda reunida na sala de jantar. 

O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade. 

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga. 

Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias. 

Silêncio 

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: 

— Papai, que é plebiscito? 

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. 

O pequeno insiste: 

— Papai? 

Pausa: 

— Papai? 

Dona Bernardina intervém: 

— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal. 

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. 

— Que é? que desejam vocês? 

— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito. 

— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito? 

— Se soubesse, não perguntava. 

O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: 

— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito! 

— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. 

— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? 

— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito. 

— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante! 

— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!... 

— A senhora o que quer é enfezar-me! 

— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber! 

— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado. 

— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira! 

— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças! 

— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho. 

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: 

— Mas se eu sei! 

— Pois se sabe, diga! 

— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo! 

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. 

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário... 

A menina toma a palavra: 

— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso! 

— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito! 

— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes. 

— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito! 

Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: 

— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco. 

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. 

Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço. 

— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!... 

A mulher e os filhos aproximam-se dele. 

O homem continua num tom profundamente dogmático: 

— Plebiscito... 

E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição. 

— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios. 

— Ah! — suspiram todos, aliviados. 

— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!... 





(Contos fora da moda





(Ilustração: Debora Arango - 1907-2005 - plebescito)





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