quarta-feira, 25 de novembro de 2020

FOLIAS CLERICAIS, de Reinaldo Moraes

 




O jornalista italiano Carmelo Abbate é especializado em produzir matérias investigativas sobre temas de relevância social, tais como trabalho clandestino, as agruras da imigração, os descalabros no sistema de saúde, o comércio do sexo e outras ciladas e sinucas que afetam os pobres, desvalidos e incautos em seu país. Muitas vezes Abbate se disfarça de objeto de seu estudo, virando imigrante marroquino, paciente da rede pública, trabalhador clandestino, ator pornô, e por aí vai, para melhor escarafunchar os dramas que pretende revelar ao público. Seu último trabalho, o livro-reportagem Sex and the Vatican — viaggio segreto nel regno dei casti (O sexo e o Vaticano — viagem secreta ao reino dos castos), que tem provocado não pouco buchicho nos meios católicos, traz revelações desconfortáveis sobre o comportamento sexual dos servos da Igreja num país ainda muito carola e conservador, pelo menos de fachada, como a Itália. 

Abbate se infiltrou no mundo íntimo do Vaticano através de um amigo homossexual que tinha lhe contado uma história curiosa iniciada numa sauna gay, em Roma. Ali, o amigo trepou com um francês radicado na Itália que, logo a seguir, se revelaria padre, e não qualquer padreco, e sim um dos sacerdotes que rezavam missa de manhã na Basílica de São Pedro, templo magno do catolicismo no Ocidente. E quando esse amigo gay do Abbate contou-lhe que planejava ir a uma festinha de embalo no apê do tal padre francês, o jornalista não teve dúvida: pediu pra ir junto, posando de namorado liberal do amigo. Foi e levou a fatídica câmera oculta com a qual, sabe-se lá como, gravou uma bela suruba clerical. Ele só não conta o seu grau de participação na suruba, se ajoelhou e rezou, etc. e tal. O que interessa é que “lá estavam muitos prelados”, em suas palavras. Prelados e de mão no bolso, eu diria, no meu irrefreável trocadilhismo. Ali tinha início uma investigação sobre a vida sexual dos supostos castos da Igreja católica, que iria durar um ano inteiro. 

E o que apurou, no geral, a bisbilhotice jornalística do Abbate, que deixou mais de um prelado em palpos de aranha pelado dentro da batina? Nada de muito novo ou original, ao meu ver. Basicamente que tem um monte de padre que faz sexo à vontade, gays e héteros, dentro e fora dos muros do Vaticano, sendo que muitos levam vida dupla, mantendo mulher e filhos em alguma quebrada mais ou menos discreta. Há relatos de surubas rotineiras também, como aquela da qual o autor participou. E não é raro, diz Abbate, que os servos de Cristo, ao gerarem rebentos indesejados em seus relacionamentos com mulheres, acabem batendo às portas dos aborteiros pra se livrar do estorvo, não raro por insistência do bispo ao qual devem obediência. E, claro, não faltam sacerdotes que se atolam no crime hediondo da pedofilia, como lemos a toda hora nos jornais. Ou seja, a turma da batina tende a agir segundo seus desejos carnais, da mesma forma que nós outros, integrantes do rebanho laico e por vezes ateu do Senhor. 

Uma das fontes secundárias de Abbate é um estudo do psiquiatra Richard Sipe, ex-monge beneditino, apontando que 25% dos padres americanos tiveram relações com mulheres e outros 20% praticaram o amor que não ousa dizer seu nome. Quer dizer, tirando uns 5% de bissexuais, que estão cá e lá nas estatísticas, concluímos que pelo menos uns 40% do clero americano já botou a genitália e a anália pra rockar e rollar fora da batina. 

Na Alemanha, outro pesquisador do assunto, ex-padre excomungado, aponta que, dos dezoito mil servidores da Igreja atuantes no país, um terço vive com uma mulher. Difícil resistir ao impulso de deduzir que pelo menos outro terço ande às voltas com homens na cama. Já no Brasil, como informa a matéria que eu li no UOL, o Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris) apontou que 41% dos clérigos confessaram já ter tido relações não canônicas com membros e membranas dos incautos fiéis que se aproximaram demais da conta deles. 

A espada moralista do Abbate pende, enfim, sobre uma instituição que prega a castidade como virtude cristã para todos e valor absoluto para os servos de Deus, e que sempre condenou o homossexualismo, o sexo fora do casamento e o aborto. As revelações sobre a vida privada dos castos, já se vê, não combinam muito com tal ideário. Castos um cazzo! E se necessário fosse dar mais uma voltinha no parafuso, o autor poderia acrescentar, numa próxima edição do seu livro, um dado curioso que em tudo combina com as revelações bombásticas que estão lá. É que o Instituto do Vinho da Califórnia acaba de publicar uma pesquisa apontando o país com maior consumo per capita de vinho do mundo. 

Qual você acha que é? A França? Não, essa vem em quinto lugar. Também não é a Itália nem Portugal, e sim o Vaticano, cidade-estado situada dentro de Roma. Os oitocentos castos que ali vivem consomem nada menos que setenta e quatro litros de vinho por pessoa ao ano, o que dá uma média de cento e cinco garrafas de 750 ml. A Itália vem apenas em nono lugar, com 37,6 litros per capita, a metade do vinho consumido no Vaticano. De fato, nada como um vinhozinho pra acompanhar uma boa sacanagem. O velho Baco já sabia disso alguns séculos antes de Cristo. 

A questão, em todo caso, é antiga. Gilberto Freyre, em seu Casa-Grande & Senzala, cravou: “O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne.” 

Na mesma época, o século XVI, Pietro Aretino (1492-1556), poeta (Sonetos luxuriosos), puxa-saco de papas e reis, chantagista da nobreza e libertino em tempo integral, escreveu os Raggionamenti (Tertúlias), traduzido no Brasil como Pornólogos, por J.M. Bortolote (Editora De Gustar), livrinho difícil de achar, mas uma iguaria para os amantes da boa sacanagem erudita. Nele, a narradora, a Nanna, conta sua vida como freira, esposa e puta, nessa ordem. Embora obra de ficção, é difícil supor que um homem esperto e observador como Aretino não tivesse se inspirado nas práticas correntes nas famílias abastadas e nos monastérios da Renascença italiana para compor suas historietas safadas. 

Nanna conta como, ainda bela e fresca donzela, foi encaminhada pela família a um convento para se entregar aos braços de Deus. Depois de acolhida num lauto banquete de boas-vindas, com padres e freiras mandando ver nas finas viandas e no generoso vinho, Nanna ganha seu kit de noviça, do qual consta um consolo de vidro oco, feito em Murano, dentro do qual se injetam líquidos quentes, como a própria urina da usuária. É com esse cazzo artificial morninho que ela mesma se desvirgina enquanto espia um animado frade “cravar a vara pelos fundos da padaria” da abadessa do convento. Logo em seguida, já livre do incômodo da virgindade, Nanna é abordada por um piedoso vigário “que me fez três vezes, modéstia à parte, duas à antiga e uma à moderna”, sendo que essa modalidade moderna do fazer sexual é a mesma que Nanna viu a abadessa experimentar pelos fundos de sua “padaria”. Aliás, o tempo todo na história de Nanna os ardorosos membros do clero e demais serviçais do convento, uma vez “satisfeitos com o primeiro bocado da cabra, queriam ainda o cabrito”. Tá certo. Um cabritinho, de vez em quando, sempre cai bem. 

A Renascença italiana era mesmo pródiga em putarias clericais e os exemplos históricos abundam (e abucetam e acaralham). Há não muito tempo, uma editora brasileira lançou uma (porno)graphic novel desenhada pelo italiano Milo Manara, com texto do chileno Alejandro Fodorowsky — ops, Jodorowsky —, relatando as façanhas políticas e sexuais de Rodrigo Bórgia (1431-1503), que virou Alexandre VI, tido como o papa mais devasso da história. O papa-papão papava de coroinhas a cardeais, de princesas a criadinhas, com fé inabalável em seu santo taco. Teve pelo menos sete filhos conhecidos. Um deles era a bela e igualmente devassa Lucrécia Bórgia, que deixaria qualquer Paris Hilton no chinelo. Dizem que dava umas comparecidas até debaixo do baldaquim do leito papal. Ou seja, mandava bala com o próprio papi papa, com quem teve um baby — ao mesmo tempo filho e neto do sumo pontífice. Não havia ainda paparazzi em Roma naqueles tempos, mas os satiristas de plantão, um certo Filofila à frente, não lhe davam trégua. Filofila chegou a escrever que “a filha do papa adora copular. Pode ser com irmão, pai, poeta, cachorro, bode e até macaco”. E, ao que consta nos anais (e também nos vaginais) da história, nada disso era nenhum grande exagero ou novidade. 

Não foi à toa, pois, que Petrarca (1304-1374), o criador da forma soneto, chamava o Vaticano de “Babilônia infernal, cárcere indecente onde nada é sagrado. Habitação de gente de peitos de feno, ânimo de pedra e vísceras de fogo”. Que as coisas não se passem de forma muito diferente por lá, hoje em dia, não deveria espantar muita gente, a julgar pelo livro do Abbate. Os “castos” do Vaticano, já se vê, além das aspas, pedem igualmente uma profilática camisinha benta. Quanto ao Carmelo Abbate, que se declara católico e gostaria de ver a Igreja modernizada e moralizada, deve ter sido uma experiência catártica tripudiar sobre a proverbial hipocrisia dos servos de Deus, que praticam o nobre e laico esporte na vida privada e vomitam virtudes e ameaças aos pecadores do púlpito. Me senti eu mesmo o meu tanto vingado com o trabalho do Abbate. De família católica, com uma ala feminina carola composta por mãe, avó e tias que não perdiam missa aos domingos e dias santos, vivi na infância e primeira adolescência sob o manto de uma vigilante repressão sexual defumada em incenso de igreja. Entre o “catecismo” do Carlos Zéfiro e o sem aspas da Santa Madre Igreja meu pau balançava. Saltei fora dessa masmorra mental aos dezesseis anos, quando mandei a turma da batina às favas e passei a acreditar piamente em sexo — e ele em mim, nos melhores dias. Como Aretino, dei uma grossa banana “a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que eles não podem ver o que mais os deleita”. 

Ecco! Deleitemo-nos, pois, seguindo o pio exemplo dos catsos, ops, castos do Vaticano. 



(O cheirinho do amor, crônicas safadas



(Ilustração: Heinrich Lossow - el pecado)



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