segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
A CONDIÇÃO HUMANA, NO INCÔMODO LIMITE ENTRE O BEM E O MAL, de Anthony Burgess
Sou, por ofício, um romancista.
Acredito tratar-se de um ofício inofensivo, ainda que não venha a ser
considerado respeitável por alguns. Romancistas colocam palavras vulgares na
boca de seus personagens e os descrevem fornicando e fazendo necessidades. Além
disso, não é um ofício útil, como o de um carpinteiro ou de um confeiteiro. O
romancista faz o tempo passar para você entre uma ação útil e outra; ajuda a
preencher os buracos que surgem na árdua trama da existência. É um mero
recreador, um tipo de palhaço. Ele faz mímica e gestos grotescos; é patético ou
cômico e, às vezes, os dois; ele faz malabarismo com palavras, como se essas
fossem bolas coloridas.
O uso que ele faz das palavras não
deve ser levado excessivamente a sério. O presidente dos Estados Unidos usa
palavras; o médico, o mecânico, o general do Exército ou o filósofo usam
palavras; e essas palavras parecem estar relacionadas ao mundo real, um mundo
em que impostos precisam ser arrecadados e depois evitados; carros precisam ser
dirigidos; doenças, curadas; grandes pensamentos, pensados; batalhas decisivas,
travadas. Nenhum criador de enredos ou personagens, por maior que seja, deve
ser considerado um pensador sério, nem mesmo Shakespeare. Na realidade, é
difícil saber o que o escritor criativo realmente pensa, pois ele se esconde
atrás de suas cenas e de seus personagens. E quando os personagens começam a
pensar e a expressar seus pensamentos, não se trata, necessariamente, dos
pensamentos do escritor. Macbeth pensa uma coisa e Macduff, algo diametralmente
oposto; as ponderações do Rei não são as mesmas de Hamlet. Até mesmo o
dramaturgo trágico é um palhaço, soprando uma melodia triste em um trombone
velho. E então seu ânimo trágico se esgota e ele se torna um bufão, cambaleando
por aí e plantando bananeiras. Nada que deva ser levado a sério.
Por vezes, entretanto, um mero
recreador como eu pode ser tragado a contragosto para a esfera do pensamento
"sério". Ele se vê forçado a dar sua opinião sobre questões
profundas. A causa dessa obrigação pode ser um repentino interesse público por
um de seus romances - um livro que ele tenha escrito sem considerar
profundamente o significado, cujo objetivo era render algum dinheiro para pagar
o aluguel, mas que acabou adquirindo uma importância não prevista pelo autor.
Ou pode ser um romance em que, graças a uma preocupação ou a um rancor
irredutível em relação a algo que acontece no mundo real, o romancista - para
seu próprio arrependimento - cria algo menos recreativo do que o normal; algo
mais assemelhado a um sermão ou a uma declaração homilética ou didática - e a
elaboração de tais coisas não é, na realidade, a função do romancista. No
momento, encontro-me escrevendo um livro bastante diferente de qualquer outro
que eu tenha escrito, e o motivo pelo qual escrevo não é tanto o interesse
público por um de meus romances, mas o interesse público por um filme realizado
a partir de um dos meus romances.
Tanto o romance quanto o filme
chamam-se Laranja Mecânica (Clockwork Orange). Publiquei o livro pela primeira
vez em 1962, e desde aquele ano conquistou leitores nos dois lados do
Atlântico, o suficiente para garantir sua contínua impressão. No entanto, dez
anos depois de corrigir as provas de gráfica, seu título e conteúdo tornaram-se
conhecidos por milhões, não apenas milhares, graças à adaptação cinematográfica
bastante fiel feita por Stanley Kubrick. Vi-me convocado, então, a explicar o
verdadeiro significado, tanto do livro quanto do filme, em todas as mídias
públicas dos Estados Unidos, e também em algumas da Europa, e minha explicação
tem sido, mais ou menos, a seguinte.
Primeiramente, o título. Ouvi a
expressão "tão estranho quanto uma laranja mecânica" pela primeira
vez em um pub londrino, antes da 2.ª Guerra Mundial. Trata-se de uma gíria
cockney antiga que se refere a uma esquisitice ou insanidade tão extrema que
chega a subverter a natureza - afinal, que noção poderia ser mais bizarra do
que uma laranja mecânica? A imagem atraiu-me não somente como algo fantástico,
mas também como algo obscuramente significativo; surreal, mas também
obscenamente real. O casamento forçado de um organismo com um mecanismo; de uma
coisa com vida, que amadurece, é doce, suculenta, com um artefato frio e morto
- seria apenas um conceito assustador? Descobri a relevância dessa alegoria para
o século 20 quando, em 1961, comecei a escrever um romance sobre curar a
delinquência juvenil. Li em algum lugar que seria uma boa ideia liquidar o
impulso criminoso por meio de terapia de aversão; fiquei estarrecido. Comecei a
investigar as implicações dessa noção em um breve trabalho de ficção. O título
Laranja Mecânica parecia estar ali, esperando para se vincular ao livro: era o
único nome possível.
O herói, tanto do livro quanto do
filme, é um jovem delinquente chamado Alex. Dei-lhe esse nome por causa de seu
caráter internacional (você não veria um rapaz inglês ou russo chamado Chuck ou
Butch), e também graças às suas conotações de ironia. Alex é uma redução cômica
de Alexandre, o Grande, talhando seu caminho pelo mundo e conquistando-o. Mas
Alex se torna o conquistado - impotente, mudo. Ele fazia sua própria lei (a
lex); torna-se uma criatura sem uma lex e sem léxico. Os trocadilhos ocultos,
claro, não se relacionam com o verdadeiro significado do nome Alexandre, que é
"defensor dos homens".
No início do livro e do filme, Alex
é um ser humano dotado, talvez exageradamente, de três características que
consideramos atributos essenciais do homem. Ele se deleita com o uso de uma
linguagem articulada e até inventa uma nova forma de comunicação (a esta altura,
ele está longe de ser aléxico); ele ama a beleza, que encontra, acima de tudo,
na música de Beethoven; ele é agressivo. Com seus companheiros - menos humanos
do que ele, pois não dão importância à música - ele aterroriza as ruas de uma
grande cidade, à noite. Essa cidade poderia ser qualquer uma, mas eu a
visualizei como uma espécie de amálgama entre minha nativa Manchester,
Leningrado e Nova York. A época poderia ser qualquer uma, mas é,
essencialmente, o hoje. Alex e seus amigos roubam, mutilam, estupram,
vandalizam; acabam matando. O jovem anti-herói é preso e punido, mas punição
não é suficiente para o Estado. Como a prisão não é um inibidor muito eficiente
para o crime, o Home Office ou o Ministério do Interior introduz uma forma de
terapia de aversão que garante, em apenas duas semanas, eliminar propensões
criminosas para sempre.
Alex, em sua inocência, abraça a
oportunidade de ser "curado". Ele tem tanta fé na indestrutibilidade
de sua própria libido que se considera mais do que um desafio para os
especialistas em comportamento do Estado. Injetam-lhe uma substância que
provoca náusea extrema, e a deflagração da náusea é deliberadamente associada a
violentos. Em pouco tempo, ele não consegue ver cenas de violência sem se
sentir desesperadamente enjoado. Fazer amor era, para ele, apenas um aspecto da
agressão; portanto, até mesmo observar uma parceira sexual desejável desperta a
náusea avassaladora. Ele é forçado a andar por uma corda bamba de
"bondade" imposta. A sociedade fica satisfeita e mal pode esperar por
um milênio livre do crime.
Mas homens não são máquinas, afinal,
e o limite entre um impulso humano e outro é sempre difícil. O tratamento de
Alex consistiu em assistir a filmes violentos e sentir a náusea induzida. Tais
filmes empregaram trilhas sonoras de música sinfônica como "amplificadores
emocionais". Após seu tratamento, o delinquente reformado descobre que não
consegue mais ouvir Beethoven sem se sentir desesperadamente doente. O Estado
foi longe demais: invadiu uma região além de seu pacto com os cidadãos; fechou
para sua vítima um universo de belezas amorais, a visão de ordem paradisíaca
que grandes peças musicais transmitem. Perturbado por uma gravação da Nona
Sinfonia, Alex tenta cometer suicídio, causando perplexidade e despertando
compaixão entre os elementos liberais da sociedade; Alex, então, é submetido a
uma terapia hipnopédica que o restaura à sua condição "livre"
anterior. Despedimo-nos de Alex enquanto ele sonha com novos e mais elaborados
métodos de agressão. A intenção era a de um final feliz.
O que tentei argumentar, com o
livro, era o fato de que é melhor ser mau a partir do próprio livre-arbítrio do
que ser bom por meio de lavagem cerebral científica. Quando Alex tem o poder da
escolha, opta apenas por violência. Entretanto, existem outras áreas de
escolha, como ilustra seu amor pela música. Na edição inglesa do livro (mas não
na norte-americana, tampouco no filme), há um epílogo que mostra Alex
crescendo, aprendendo a desgostar de seu antigo estilo de vida, pensando no
amor como algo maior do que uma forma de manifestar violência; até mesmo
imaginando-se como marido e pai. Tal caminho sempre esteve aberto; ele, enfim,
opta por segui-lo. Antes uma laranja podre, ele agora se preenche com algo mais
próximo da doçura humana decente.
Liberdade de escolha é mesmo tão
importante? O homem é capaz disso? O termo "liberdade" tem algum
significado intrínseco? São questões que preciso perguntar e tentar responder.
Devo registrar que fui ridicularizado e criticado por expressar meus receios em
relação ao poder do Estado moderno - seja na Rússia, na China ou na que
poderíamos chamar de Anglo-América - de reduzir a liberdade individual. A
literatura já denunciou esse poder em livros como Brave New World (Admirável
Mundo Novo), de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, mas pessoas
"sensatas", que não se comovem muito com textos criativos, garantem
que há pouco com o que se preocupar. O livro Beyond Freedom and Dignity (O Mito
da Liberdade), de B. F. Skinner, foi lançado na mesma época em que Laranja
Mecânica surgiu nas telas, pronto para demonstrar as vantagens do que
poderíamos chamar de lavagem cerebral benéfica. Nosso mundo está em má
situação, diz Skinner, com os problemas das guerras, da poluição ambiental, da
violência civil, da explosão demográfica. O comportamento humano precisa mudar
- isso, diz ele, é autoevidente, e poucos discordariam - e, para tanto,
precisamos de uma tecnologia para o comportamento humano. Podemos deixar de
fora desta equação o homem interior, o homem que encontramos quando discutimos
com nós mesmos, o ser oculto que se preocupa com Deus, com a alma e com a
realidade absoluta. Precisamos enxergar o homem de fora, considerando
especialmente o que leva uma característica do comportamento humano transferir-se
de um indivíduo para outro. A abordagem behaviorista do homem, da qual o
professor Skinner é um grande expoente, prega que ele é levado a vários tipos
de ações por estímulos de aversão e não aversão. Medo do chicote fazia o
escravo trabalhar; medo da demissão ainda faz o escravo do salário trabalhar.
São tais reforços negativos para a ação que o professor Skinner condena; o que
ele deseja ver são reforços positivos. Você ensina truques a um animal de circo
não por meio da crueldade, mas da bondade. (...)
Com os estímulos positivos certos -
aos quais respondemos não de maneira racional, mas por meio de nossos instintos
condicionados -, todos nós poderemos nos tornar cidadãos melhores, submissos a
um Estado cujo objetivo maior é o bem-estar da comunidade. Não devemos, diz tal
argumento, temer o condicionamento. Precisamos ser condicionados para salvar o
ambiente e a raça. Mas precisa ser condicionamento do tipo certo.
Segundo o discurso skinneriano, é o
tipo errado de condicionamento que transforma o herói de Laranja Mecânica em um
nauseado modelo de não agressão. O fato de eu mesmo considerar qualquer tipo de
condicionamento um erro deve ser atribuído, imagino, à força da tradição
religiosa na qual fui educado. Eu fui, pode-se dizer, condicionado por ela, mas
minha consciência aprova as convicções que sinto em meu âmago. Minha família é
de Lancashire, um condado ao Norte do Reino Unido que foi uma fortaleza da fé
católica. A Reforma Protestante, que transformou a Inglaterra no que ela é
hoje, nunca chegou a Lancashire ou, caso tenha chegado, o fez de maneira suave
e moderada, nas infiltrações pacíficas dos períodos mais tolerantes que
seguiram as sangrentas imposições dos Tudors. O tipo de protestantismo que
floresceu na época de Cromwell e criou uma nova estirpe de mercadores burgueses
era calvinista. Predestinação era seu eixo doutrinal. O homem não teria
arbítrio sobre a própria salvação; seu estado futuro havia sido predeterminado
por Deus.
O catolicismo rejeita uma doutrina
que parece enviar alguns homens arbitrariamente ao Paraíso, e outros, de
maneira não menos arbitrária, para o Inferno. Seu destino, diz a teologia
católica, está em suas mãos. Não há nada que o impeça de pecar, se você quiser
pecar; ao mesmo tempo, não há nada que o impeça de se aproximar dos canais de
graça divina que são a garantia de sua salvação. O fato de duas doutrinas
opostas - a do livre-arbítrio e a da predestinação - poderem coexistir na mesma
fé religiosa requer explicação. Primeiramente, há a onisciência de Deus. Se
Deus sabe tudo, Ele sabe se eu serei condenado ou salvo: meu destino derradeiro
foi, digamos, reservado desde o início dos tempos. Mas se Deus dá ao homem o
poder da livre escolha, poderia parecer que Ele está deliberadamente
renunciando à Sua consciência sobre o que o homem fará com esse poder. Um Deus
onisciente e onipotente, em um gesto de amor pelo homem, limita tanto Seu poder
quanto Seu conhecimento. (...)
Todos nós poderíamos concordar com o
professor Skinner: uma sociedade bem governada e condicionada é algo excelente
para uma nova raça - uma espécie de homem racionalmente convencida da
necessidade de ser condicionada, desde que o condicionamento seja baseado em
recompensas, não em punições. Mas não somos essa nova raça, e teimamos em não
ser nada além do que somos. (...)
Poder-se-ia considerar o princípio
do mal no âmbito da conduta em que a destruição de um organismo não é
intencional. É errado forçar crianças a consumir drogas, mas poucos negariam
que é, também, maldade: a capacidade de autodeterminação daquele organismo está
sendo prejudicada. Mutilar é maldade. Atos de agressão são maldosos, apesar de
sermos propensos a encontrar fatores atenuantes no espírito passional da
vingança ("um tipo de justiça selvagem", definiu Francis Bacon) ou no
desejo de proteger os outros de esperados, senão praticados, atos de violência.
Todos nó guardamos, na imaginação ou na memória, imagens do mal em que não há
sequer um sopro de atenuação - quatro jovens sorridentes torturando um animal,
um estupro em gangue, vandalismo a sangue frio. Aparentemente, o
condicionamento forçado de uma mente, por melhor que seja a intenção social, é
maldade.
(OESP/10 de novembro de 2012;
Copyright The Clockwork Condition -A Condição Mecânica - © The Estate of Anthony Burgess; tradução de
Henrique B. Szolnoky)
(Ilustração: foto do filme Clockwork Orange, sem indicação de autoria)
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