quarta-feira, 20 de setembro de 2017

ALBERTINE MORRERA, de Marcel Proust








Supressão do sofrimento, não, mas uma dor desconhecida, a de saber que ela não voltaria mais. Não dissera eu a mim mesmo, porém, tantas vezes, que talvez ela não voltasse? De fato, mas agora percebia que nem por um minuto havia acreditado nisso. Como necessitasse de sua presença, de seus beijos, para o suportar o mal que me causavam as suspeitas, eu adquirira, desde Balbec, o hábito de estar sempre a seu lado. Mesmo quando ela saía e eu ficava sozinho, ainda a beijava. E assim continuei quando ela foi para a Touraine. Precisava menos de sua fidelidade que de sua volta. E se minha razão podia duvidar disso impunemente, nem por um instante minha imaginação deixava de figura-lo. Instintivamente, passei a mão pelo pescoço e nos lábios, que se sentiam beijados por ela depois que se fora, e que não o seriam nunca mais; passei a mão por eles, do mesmo modo que mamãe me acariciava quando da morte de minha avó, dizendo-me: “Coitadinho, tua avó que te queria tanto, agora não te beijará mais”. Toda a vida futura estava arrancada de meu coração. Minha vida futura? Não pensara eu, então que lhe consagrara todos os minutos de minha vida, até a morte? Certamente que sim! Esse futuro inseparável dela e que não soubera perceber, agora que acaba de descerrar-se, bem sentia o lugar que ela ocupava em meu coração escancarado.

Françoise, não sabendo ainda de nada, entrou no quarto. Gritei-lhe, furioso:

- Que é que há?

Então (às vezes, certas palavras põem uma realidade diferente no mesmo lugar da que está perto de nós: atordoam-nos como uma vertigem) me disse ela:

- Não precisa ficar com esse ar zangado. Pelo contrário, vai ficar muito satisfeito. São duas cartas da srta. Albertine.

Senti, depois, que devia estar com os olhos de alguém cujo espírito vacilasse. Nem mesmo me senti feliz, nem incrédulo. Estava como uma pessoa que visse o mesmo lugar no quarto, ocupado por um sofá e por uma gruta: nada mais lhe parecendo real, ela desaba no chão.

As duas cartas de Albertine deviam ter sido escritas a poucas horas de distância, talvez na mesma ocasião, pouco antes do passeio em que ela morrera. Dizia a primeira:

“Meu amigo, agradeço-lhe a prova de confiança que me deu, ao me comunicar sua intenção de levar Andrée para sua casa. Sei que ela aceitará com alegria, e será ótimo para ela. Bem-dotada como é, saberá aproveitar a companhia de um homem de sua qualidade e a admirável influência que você sabe exercer sobre as pessoas. Creio que desta sua ideia poderá advir tanto bem para ela quanto para você. Por isso, se ela puser qualquer dificuldade (o que não acredito), mande-me um telegrama, que me encarrego de arranjar as coisas”.

A segunda era datada de um dia mais tarde. Na realidade, deviam ter sido escritas a poucos instantes uma da outra, talvez juntas, e a primeira antedatada. Pois durante doto o tempo eu imaginara absurdamente suas intenções, que não consistiam senão em voltar para junto de mim, e qualquer pessoa desinteressada no assunto, um homem sem imaginação, o negociador de um tratado de paz, o comerciante que examina uma transação, as teria compreendido melhor do que eu. Continha apenas estas palavras:

“Seria muito tarde para eu voltar para sua casa? Se você ainda não escreveu para Andrée, consentiria em me aceitar de novo? Eu me curvarei diante de sua decisão, mas, por favor, não demore a comunica-la; bem avalia com que impaciência a espero. Se for para eu voltar, tomarei o trem imediatamente. Sua, de todo o coração, Albertine”.

Para que a morte de Albertine pudesse suprimir meus sofrimentos, seria preciso que o choque a tivesse matado não somente na Touraine, mas em mim. Nunca ela aí estivera tão viva. Para penetrar em nós, uma criatura é obrigada a tomar a forma, a submeter-se ao quadro do tempo; só nos aparecendo em minutos sucessivos, nunca pode dar-nos de si senão um aspecto de cada vez, fornecer-nos apenas uma fotografia. Grande fraqueza, sem dúvida, para uma criatura, consistir numa simples coleção de momentos; grande força, também. Depende da memória, e a memória de um momento não está informada sobre tudo o que se passou depois; aquele momento que ela registrou perdura ainda, vive ainda, e, com ele, a criatura que aí se perfilava. E depois, esse esmigalhamento não faz viver simplesmente a morta, multiplica-a. Para me consolar, não era uma, eram inúmeras Albertines que eu deveria esquecer. Quando tinha chegado a suportar a mágoa de perder esta aqui, tinha de recomeçar com relação a outra, a cem outras.

Então minha vida ficou inteiramente mudada. Aquilo que, e não por causa de Albertine, mas paralelamente a ela, quando eu estava só, lhe constituíra a doçura, fora justamente, ao apelo de momentos idênticos, o perpétuo renascimento de momentos antigos. Pelo rumor da chuva me era restituído o cheiro dos lilases de Combray; pela mobilidade do sol no balcão, os pombos dos Campos Elíseos; pelo amortecimento dos ruídos no calor da manhã, a frescura das cerejas; o desejo da Bretanha ou de Veneza, pelo rumor do vento e pela volta da Páscoa. O verão chegava, os dias eram longos, fazia calor. Era o tempo em que, de manhã cedinho, estudantes e professores vão para os jardins públicos preparar debaixo das árvores seus últimos concursos, a fim de recolherem essa gota única de frescura, deixada cair de um céu menos flamejante que sob o ardor do dia, mas já também esterilmente puro.

Do meu quarto escuro, com um poder evocação igual ao de outrora, mas que já não me causava senão sofrimento, eu sentia que lá fora, na densidade do ar, o sol poente punha na verticalidade das casas e das igrejas um tom fulvo de oca. E se, ao voltar, Françoise desarranjava involuntariamente as pregas das grandes cortinas, eu sufocava um grito ante o rasgão que acabava de fazer em mim aquele raio de sol antigo, que me fizera achar linda a fachada nova de Bricqueville l’Orgueilleuse, quando Albertine me disse: “Ela foi restaurada”. Não sabendo como explicar meu suspiro a Françoise, eu lhe dizia: “Ai, que sede! ” Ela saía, voltava, mas eu me virava violentamente, sob a dolorosa descarga de uma entre mil recordações invisíveis que a cada momento explodiam em redor, na sombra: acabara de vê-la trazendo a cidra e as cerejas que um empregado da granja nos levara ao carro, em Balbec, espécies sob as quais eu mais perfeitamente comungaria, outrora, com o arco-íris das salas de jantar escuras, nos dias ardentes. Pensei, então, pela primeira vez, na granja de Escorres, e disse comigo que em certos dias em que me declarara em Balbec não estar livre, pois era obrigada a sair com a tia, Albertine estaria talvez com alguma de suas amigas, numa granja a que ela sabia que eu não costumava ir, e, enquanto eu a esperava ansiosamente em Marie-Antoinette, onde me haviam dito: “Não a vimos hoje”, ela usava com sua amiga as mesmas palavras que comigo, quando saíamos os dois: “Ele não terá ideia de nos procurar aqui, e assim não seremos perturbadas”.

Eu dizia a Françoise que cerrasse as cortinas, para não tornar a ver aquele raio de sol. Mas ele continuava a filtrar-se, igualmente corrosivo, na memória: “Não gosto, foi restaurada. Mas amanhã iremos a Saint-Martin-le-Vêtu, e depois de amanhã a...” Amanhã, depois de amanhã, era um futuro de vida comum, talvez para sempre, que começava; meu coração atirou-se a ele, mas já não estava mais ali, Albertine morrera.



(Em busca do tempo perdido: A fugitiva; tradução de Carlos Drummond de Andrade)





(Ilustração: Jacques Falce;  Proust - Le narrateur et Albertine sur la digue Marcel Proust)



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