terça-feira, 31 de outubro de 2017

O FALANSTÉRIO, de Juan Carlos Onetti








Lanza toca os bigodes e levanta outra vez o caneco de cerveja; junto com o disco de cartão pegajoso levanta também o assunto que eu afastei por um momento movendo dois dedos.

- O pior que posso dizer de seus poemas – ele disse – é que são bons. Preferiria vê-los horrorosos, olhá-los como bichos disforme e malnascidos, como animaizinhos a que sobrassem ou faltassem patas, olhos, cornos. Quer dizer...

- Não diga nada, não me interessa. Não me interessam os versinhos que lhe emprestei com vergonha. Não quero arrepender-me. Nasceram e estão mortos. 

- Quer dizer – continua com tristeza e resolução, com uma gravidade desproporcionada – que estão mal por estarem bem. Na sua idade e nesse ano e nessa cidade, eu teria preferido um grito, um gesto incompreensível, alguma forma de loucura.

- Sim. – Sorrio e bebo. – Idade, ano, Santa Maria e, se esqueceu, circunstâncias pessoais.


Fica desarmado e mais triste, procura buscar o moço no meio da mistura de fumaça e palavras, no ar uma noite de sábado no Berna. 


- Não – murmura olhando-me. – Não me esqueci, e você sabe. Deve falar a este pobre velho. Só incomodo no indispensável. Você me entende: porque de tudo o que li, me ficaram só algumas linhas que tocam o que lhe peço, o que você está malditamente condenado a escrever. Desculpe os erros, não se dedique nunca a corrigir provas. Escute o que fizemos:


                 Y yo lo pierdo, doy mi vida


                 a cambio de vejeces y ambiciones ajenas


                 cada dia más sucias, deseosas y frias


                 irme y no lo haré, dejar que no lo crea.

Pedimos mais cerveja, e tomo um tempo grande, esvaziando e carregando o cachimbo, fazendo comentários sobre a gente que entra e sai. A cara de Lanza está bondosa e tranquila, com uma vitória atenuada nos olhos úmidos e vermelhos.


- Sim – digo – me agrada. Mas isso tem pouco que ver, não é o monstro com patas equivocadas que lhe dei para ler. É muito melhor, distante do horror e do grito.

- Não creia – fala por entre os dentes e a espuma, decidido. – Serão falas de memória, trapalhadas de velhos. Mas essas quatro linhas equivocadas... Encontro-lhes, assim, o desconcerto e a verdade que lhe pedi ou desejei. Mas é inútil. Você já disse. Nesta classe de coisas não valem opiniões. Os que as levam a sério estão perdidos. E agora, olhe disfarçadamente para o balcão. Seu parente Marcos invadiu a casa com os parasitas de costume e algumas mulheres. Tudo, ruína melancólica do Falanstério.


Olho e ali estão, bebendo e comprando garrafas. Volto-me para o velho.


- Uma noite me falou no Falanstério. Escutei algum mexerico solto, claro. Mas na verdade, não sei, não entendo.

Lanza se ri fuma devagar.


- Tem tempo? – me pergunta.


- Todo.

- Feliz de você. Acenda e cachimbo e aguente. Outro horror em jogo, na realidade. Lástima, se vai-se jogar. Marcos Bergner não merece a paternidade, nem a culpa do fracasso desse assunto. Que diferença de idade existe entre você e ele?

Fumo, calculando. Não adivinho a intenção do prólogo do velho Lanza. Eu o chamaria de preâmbulo. Em todo o caso, a noite promete ou ameaça ser longa. Conheço os truques dos velhos e dos jovens idiotas para lograr um efeito contando qualquer história trivial. Lembro o enfado de meu pai.


- Uns dez anos, suponho – contesto por fim.


- E desde quando se lembra dele? Peço uma recordação verdadeira. 


- De verdade... Bem; faz dois ou três anos que comecei a vê-lo. Vê-lo desta maneira que você sugere.


Lanza sorri contente e demora acendendo o cigarro. Não importa; me interessa o Falanstério.


- Então – disse com alívio – falamos de pessoas diferentes. Havia, houve outro Marcos. Veja-o bêbedo, gordo, grosseiro, inchado. A grande desgraça, as mudanças me tiraram da Espanha, e aqui estou. Já olhei, tive tempo de sobra, meu problema pessoal de todos os ângulos, a lógica, o sonho, o desespero. Coisas más não faltaram. Finalmente não tive opção. Me empurraram a fundear-me em Santa Maria, junto com o Dr. Diaz Grey, o amigo de Larsen – filatelista de putas pobre – e muitos outros que não vêm ao caso esta noite. Aqui até a morte – me diz ele movendo os ombros, entre os dedos que levantou para cobrir a tosse. – Tristeza, existe; resta a incompreensão. Mas nem drama, nem melodrama. Falanstério. Lhe falava de um Marcos Bergner que você nunca conheceu. Teria, então, os anos que você tem agora. Alguma coisa, muito pouco mais, por acaso. Mas tinha uma coisa que você, me perdoe, não tem. Tinha esta forma de saúde que chamamos sanguínea. Você, escrevendo poemas, pode ou poderá viver as experiências humanas mais importantes. Aquele Marcos as viveu em corpo e alma – se é que tem isso – sem necessidade de escrever uma linha. E estava com a moça de Insurralde, quase compatriota minha. Tenho para mim que o verdadeiro nome deve ser Insaurralde. Mas não importa muito. Toda mudança para Santa Maria murcha e degenera. Não vamos nos preocupar com uma perdida.

- Sim – digo suavemente, para que o velho saiba que estou presente e não o interrompo. – Era noiva de Marcos.


- Ela e todos os hectares de terra que comprou seu pai. A colônia de suíços começava a organizar-se. Cada seis meses chegavam famílias com baús de folha de lata, vestimentas raras e endurecidas, bíblias e vontades. Entretanto, ainda não havia Colônia. Mais ou menos por aqui apareceu o retrato. Teria sido feito por Orloff, o príncipe, que deve andar por esses bairros desde a revolução russa de 1905, ou desde que Catarina, a Grande, se fartou de Potemkin. Orloff lhe contará qualquer coisa e saberá persuadi-lo, lhe dirá com paixão, sem sofre. Mente melhor que eu. Coincidimos, concordo, em anacronismos, exagerações impossíveis. Mas somos diferentes: ele busca a beleza, a vinheta literária, o que agora chamam escapismo, o invento. É uma posição de artista. Eu sou um pobre velho que busca a verdade. 


Às minhas costas, Marcos grita ameaçante e, de imediato, põe-se a rir. Seus amigos fazem-lhe festa e pedem mais copos.


- Que fazem as mulheres? – pergunta Lanza.


Espio e conto sem entusiasmo.


- Uma – lhe digo – fuma com cara de doente, de vômito. Há outra que cantarola e se pinta, tão tranquila como se cosesse um vestido ou arrumasse a casa, uma peça, que se suponha.


Trazem dois canecos de cerveja, e Lanza toca a espuma com os lábios.


- Bem – aceita. – Agora Orloff e a fotografia. Tenho uma cópia em casa, tenho, há anos, uma pasta com tudo o que me interessou ter. Seria uma surpresa. Algum dia o convidarei para vasculhar essa papelada, para conhecer, por sagrado dever patriótico, a verdadeira história de Santa Maria. No entanto, minha versão da foto. Aí tem você um Marcos fraco, com orelhas de sátiro, as sobrancelhas grandes e inquisidoras, o nariz duro, a boca infantil. Há uma capa negra, ou talvez um ponche sobre os ombros; da capa-ponche saem umas mãos incrivelmente grandes, dedos que nunca tive. Não se como se fez o truque. O corte da jaqueta que usa é antigo, o colete alto, e a gravata fúnebre excessivamente grande. Este Bergner, com um talho na sobrancelha, posa olhando para baixo. Pode ser que por aqueles tempos ele também escrevesse poemas. Descanse e veja-o, imagine. Não é impossível, me ocorre agora, que algum dia você venha a se parecer com este Marcos desta noite. No Arquivo e Museu Lanza encontra-se, miraculosamente, outra fotografia indispensável. É da vaquinha Insurralde, Moncha.


Muito pobre, amarela e desvanecida, apenas um recorte de jornal. Mas se nota ainda o olhar desafiante, a boca sensual e desdenhosa, a força da mandíbula. Não esquecemos que era maior que Marcos e maior de idade. Estudando com paciência a segunda cara chega-se a compreender por que não houve tua tia, porque ele, o velho Insurralde, a mãe não existia mais, não teve mais remédio senão meter a viola no saco e aceitar. Aceitou o Falanstério, o que já é muito, se recordarmos hábitos e situações geográficas.

Eram seis, no princípio, todos ricos e jovens. Dois casados, Marcos e Moncha. No período de grandeza chegara a dez, sem contar as crianças. Não se sabe e não consegui sabe-lo, quem propôs e advogou a ideia. Era simples em aparência; era muito simples se a resumirmos sobre um papel, ou a discutirmos de sobremesa. Aquele remoto Marcos Bergner oferecia parte de seus campos e o fragmento de estância que tocará a você herdar um dia. Assunto de bens lucrativos, propriedade indivisível, qualquer definição igualmente repugnante.


Naquele tempo, naquelas noites, os três pares iniciais se reuniam para comer no Clube do Progresso, ou terminavam convidando-se para suas casas. Também, alguns sábados na casa do vasconço Insurralde. A ideia, repito, era tão simples como infalível: mudar-se de Santa Maria, estabelecer-se na pequena estância, recolher colheitas, alegrar-se com o crescimento e a multiplicação dos animais. Primeira etapa. A segunda incluía a compra de mais terras, a importação de animais de raça, a inexorável acumulação de milhares de pesos. O projeto era bom e bem formulado, volto a dizer, em teoria. Todos os pioneiros contavam com um resguardo econômico para ajudar nos casos não esperados de secas, pestes, golpes de granizo, época de vacas fracas. Havia peões, supostamente, para que os homens pudessem concentrar-se na tarefa intelectual de dirigir e planejar. Campesinas humildes para que os meninos não incomodassem demais e para que, dia a dia, a comidas estivessem prontas na hora e, também, supostamente, se trataria de um labor cooperativo, pelo menos no que se refere à repartição dos lucros. Bem, uma comunidade cristã e primitiva baseada em altruísmo, tolerância, mútuo entendimento.

E se fez, iniciaram. Imagino a pequena vasconça, a única solteira do Falanstério, enfrentando o velho Insurralde que só podia suplicar ou dizer palavrões. Porque a Moncha era maior de idade e porque os dois terços da fortuna dos Insurralde pertenciam a ela. Imagino-a impassível e resoluta, com esta cara de jornal que já tratei de descrever, dando, uma só vez, sua resposta:

- Quero conhecer Marcos de verdade. Necessito saber quem é antes de me casar.


E, naturalmente, foi-se com os demais. Uns meses depois se juntou, como já disse, outro par de casados. Fizeram, é justiça dizê-lo, tudo o que haviam proposto para a primeira etapa. A estância, o Falanstério, andou bem, mas muito bem, durante um ano e dezoito meses. Os historiadores não nos pousemos de acordo com respeito a sua duração exata. Mas quando juntávamos nossas solidões, de origens diversas, para jogar pôquer ou buraco (*), coincidíamos naquilo que a História impõe com datas, o que tem de mais incompreensível, choco e tanto. Coincidimos no objetivismo histórico. No nada, na casa de ovo vazia.


Concordamos que aos seis e vinte e três dias a pequena vasconça Insurralde disparou do Falanstério num cavalo roubado, tocou para Santa Maria para descansar se foi para a Capital buscando um barco que a levasse para a Europa. Alguns meses depois o pai vendeu a bons preços o que tinham, e nunca mais soubemos deles. Mas restava ignorada a verdade, e todos nós tentamos apanhar com honra e decoro a casca vazia. Somente, quem ia dizer-nos a verdade? Porque, pouco a pouco se foi despovoando o Falanstério, interromperam-se projetos, deixaram morrer a semeadura e as colheitas, venderam quase todos os animais.


Era inútil pretender que algum dos nove falansterianos abordáveis desse alguma explicação sobre o fracasso. Agora, se lembrarmos que um dos quatro casados decidiu separar-se logo da experiência comunitária, cristã e primitivista, o cronista se sente autorizado, frente a sua consciência profissional e frente ao juízo das gerações futuras, a levar em conta as muito coincidentes versões dos esforçados trabalhadores rurais que acompanharam Marcos e companhia ao êxodo e à aventura. Sobretudo, pode-se crer no pouco que contou Barrientos, o homem que era capataz na malograda empresa e que agora, creio, tem um armazém ou coisa parecida lá pros lados de Enduro.


Quanto a Marcos, esteve à altura das dolorosas circunstâncias, soube aceitar o duelo e a adversidade. De volta a Santa Maria, dedicou-se por um tempo a embebedar publicamente sua tristeza. Depois carregou o iate com caixões de bebidas, obteve a presença fraternal de algumas mulheres e amigos e desapareceu rio acima ou abaixo, durante vários meses.


As declarações dos trabalhadores da terra e dos ginetes encarregados dos rebanhos podem ser, claro, filhas da maledicência. Um investigador severo acreditará, por acaso, neles. Mas não deve utilizar a bisbilhotice ressentida, tão própria das classes baixas, para escrever e legar uma “Introdução à Verdadeira História do Primeiro Falanstério Santa-mariense”. Eu a fiz.


Conto ali que, aos seis meses mais ou menos de iniciado o descomunal empenho, começou-se a notar certa confusão. Não era possível, à primeira vista e intenção, determinar com exatidão quem integrava os sagrados núcleos familiares. Devo deixar consignado que, naturalmente, os peões não se aproximavam com frequência da fortaleza falansterial. Mas estavam ali, inevitáveis, dentro do reduto, as meninas encarregadas da cozinha e do cuidado das crianças.


Lentamente, segundo as calúnias divulgadas, o reinado das novas parelhas, nem legalizadas nem benditas, foi substituído pelo critério que rege as mais aperfeiçoadas sociedades industriais de nosso século: evitar toda a perda de material ou tempo. Pela época, o Marcos Bergner da fotografia que lhe descrevi por um momento tinha conseguido numerosos adeptos para seu culto báquico.

Segundo as más e sujas línguas, o novo e solene rito acontecia duas vezes por semana. Empregavam dados ou cartas, inocentes cédulas de São João envoltas nos chapéus. Os falansterianos renunciaram, pois, aos cegos impulsos, às atrações enganosas. Acataram a onisciência dos deuses, o Azar, o Destino, para dispor, duas vezes semanalmente, de suas companhias noturnas. E as cinco mulheres eram jovens e agradáveis; não opino sobre os homens; só posso dizer que também eram jovens.

Falou-se também de que, para variar de oráculo, jogavam às vezes sorteando chaves dos dormitórios. Esta ideia tem o seu encanto, sua fantasia. Mas eu, como historiador integérrimo e de pudor, não pude aceita-la. Porque é muito pouco provável, você deve sabe-lo, que os dormitórios da estância de Marcos tivessem fechadura e chave. Além do mais, não necessitavam delas; salvo, pode-se admitir com reservas, que as usassem como símbolos, como uma variante poética da cerimônia.


A isto, a escória documental que se obstina com frequência em não deixar-se separar do outro refulgente da verdade, pode acrescentar-se, como simples curiosidade, algum grau aumentativo. A poderosa imaginação novelística dos analfabetos acrescenta que os azarentos pares ajudados pelos deuses descobriram, a seu tempo, também eles, que não há solidão mais triste que a solidão de dois em companhia. Ergo, em consequência, optaram pelos encantos das atividades sociais, pelos prazeres das obras coletivas, tão superiores aos que podem oferecer os egoísmos individualistas, pequeno-burgueses.

Agora, em minha persecução à verdade, devo assinalar-lhe dois pontos de minha história que não resultam de todo convincentes. Tendo em conta, como fator decisivo na natureza humana, que todos nós envaidecemo-nos de compreender, nenhuma reflexão conseguiu me esclarecer por que os falansterianos demoraram tanto a iniciar a fatal promiscuidade. Emprego como data a fuga raivosa e espantada da pequena vasconça Insurralde. E tampouco entendo que, uma vez aceita a integridade de uma experiência comunitária, os personagens do drama tenham podido conviver tanto tempo sem terminar a balaços ou patadas. E acrescento que resulta curioso ver e ouvir seu parente Marcos organizando uma Santa Cruzada contra o humilde prostíbulo que dirige na costa o cidadão Larsen, que tem o mau nome de Junta-Cadáveres. Considerado o assunto de um ponto de vista psicológico, pode tratar-se da tão comum rivalidade vocacional que tem caracterizado sempre os artistas. Agora, se aplicamos um critério marxista, pode ser que o ódio tenha como origem o fato de que as três mulheres da casinha azul não trabalham de graça, não são movidas, na cama, pelo nobre amor ao oficio. Tão diferentes das que teve e conheceu Marcos no breve tempo idílico do inolvidável Falanstério.




 (*) Tute o al mus, no original. Tute é uma espécie de bisca e mus é um tipo de jogo de cartas da Espanha. (N. do T.) 




(Junta-Cadáveres; tradução de Flávio Moreira da Costa)




(Ilustração: Hieronymus Bosch; The Garden of Earthly Delights)






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