quarta-feira, 12 de julho de 2023

DO RECENTE MILAGRE DOS PÁSSAROS ACONTECIDO EM TERRAS DE ALAGOAS, NAS RIBANCEIRAS DO RIO SÃO FRANCISCO, de Jorge Amado





O milagre aconteceu na cidade de Piranhas, às margens do rio São Francisco, em dia de feira e animação. Comprovado por centenas e centenas de viventes, de condição social diversa, desde o rico coronel Jarde Ramalho, o que lutou contra Lampião, até pobres lavradores vindos do interior para vender sua farinha de mandioca e o milho das roças. Assistido por uma visita ilustre, recebida com festas na cidade, dona Heloisa Ramos, viúva do mestre romancista. Não sendo ela, como é público e notório, dada a mentiras, seu testemunho por si só assegura a veracidade do caso.

Heróis do acontecido foram Ubaldo Capadócio, de profissão literato de cordel, trovador popular e amante, nos três ofícios de reconhecida competência e vasta aceitação, e o capitão Lindolfo Ezequiel, cuja reputação de valentia e crueldade corria mundo naquele território de colhudos que é o chão das Alagoas. Capitão de que arma não se tirou a limpo até hoje mas as dragonas ele as conquistou mandando gente para o cemitério, pois as ocupações em que se fez famoso eram a de pistoleiro (com a qual ganhava dinheiro e consideração) e a de esposo de Sabô, sendo que essa última profissão exigia dele capacidade, vigor e ameaças violentas à população masculina pois Sabô - diga-se a verdade - não tinha respeito pela patente do marido, nem pela cara feia, nem pela arma mortal, e vivia de dentes arreganhados. Com Sabô sonhavam os homens todos das ribanceiras do São Francisco, solteiros, casados, noivos, amigados, incluindo menores de catorze anos. Mas coragem de enfrentar a macheza do marido, a morte no bocal do fuzil, somente ela demonstrava; os suspirantes trancavam o peito e o rabo, desviando os olhos da oferecida. Ubaldo Capadócio enfrentou. Não por ser de coragem desmedida, impávido. Por ignorância dos fatos e das condições locais, forasteiro de passagem em cata de leitores, de feira animada para nela vender os folhetos de cordel—o último deles, O caso da grã-fina que se amigou com o lobisomem, vinha obtendo sucesso e merecido —, de festa na qual tocar harmônica e improvisar versos, de cama acolhedora, seio de morena onde descansar das lides. Fosse por que motivo fosse enfrentou o pistoleiro e o fez vestido de camisola de mulher, das bem curtinhas, para ser exato a peça superior do baby-doll cor-de-rosa de Sabô.

O trovador Ubaldo Capadócio tinha estampa, arrebatava corações. Caboclo alto e garboso, um galalau, cabeleira esgrouvinhada, riso fácil, conversa de salão salpicada de ditos engraçados e palavras de dicionário, mal chegava, logo a roda de prosa se estabelecia. Na vastidão dos sertões da Bahia e de Sergipe onde habitualmente exercia deveres, cuidados e alegrias, era figura popular e requisitada. Vinham buscá-lo de longe para animar batizados, casamentos, velórios: não havia igual num brinde aos noivos, melhor contador de casos numa vigília, capaz de fazer o pr6prio defunto rir e chorar. Não se trata de força de expressão pois o fato aconteceu e há testemunhas vivas, capazes de dar depoimento. Citarei apenas dois nomes, entre vários: o de mestre Calasans Neto e do trovador grapiúna Florisvaldo Matos. Ambos viram quando o finado Aristóbulo Negritude abriu na gargalhada, ali mesmo deitado no caixão, mortinho da silva, ao ouvir Ubaldo Capadócio contar a história da baleia que apareceu em Maragogipe. Não cito o pintor Carybé por ser mentiroso inveterado. Segundo ele, Negritude não somente riu, como acrescentou detalhe (sujo) à narrativa. Na opinião dos entendidos, o detalhe porco é invenção do próprio Carybé, cidadão de moral duvidosa, já que Aristóbulo se bem que pernóstico não era homem de pregar remendo em relato alheio, defunto delicadíssimo.

Num forrobodó, nem se fala: Ubaldo Capadócio demonstrava seu inteiro valor. A harmônica de encontro ao peito, a voz rouquenha lavada no gole de cachaça, langoroso olhar de súplica, a dedilhar amor. Arrancando suspiros, recolhendo promessas de solteiras e casadas, de amigadas e escoteiras de inconsoláveis viúvas— consolar viúvas fazia parte de sua generosa natureza. Fundos suspiros, ardentes promessas, mas recolhia igualmente ameaças e juras de vingança. Não sendo medroso, ia em frente.

De natural andejo, viu-se de casa montada, lar estabelecido—casas e lares— tanto na Bahia como em Sergipe. Estampa e fama, já pensaram? Tantas mulheres, a todas permanecia fiel, constante coração. Com nenhuma rompeu (à exceção de Bráulia, mas Bráulia, meu Deus . . .), a nenhuma despediu, mandou embora. Elas, sim, se mandavam, safadas da vida, proclamando-se vítimas de abuso e traição, quando comprovavam a existência de outras, de várias outras—como se um bardo errante, afastado do lar durante semanas, quinzenas, meses, pudesse guardar castidade. Esses bruscos rompimentos jamais aconteciam por iniciativa de Capadócio, e o deixavam inconsolável; ao perder uma delas sua reação era a de quem estava perdendo a única mulher de sua vida. Sendo muitas, todas eram a única, quem não entende a adivinha nada sabe dos mistérios do amor. Qual o motivo das repetidas ingratidões, por que esse absurdo egoísmo exclusivista se a ele, Ubaldo Capadócio, não Ihe faltava força de arrimo e decisão para a todas satisfazer com plenitude na cama e no sentimento, sobrando-lhe para tanto competência e fantasia?

Algumas não partiam, conformavam-se e assim, aos trinta e dois anos, quando sucedeu o milagre de Piranhas, Ubaldo Capadócio sustentava três famílias com proventos dos folhetos de cordel, da harmônica e da viola, com a voz rouquenha e as rimas da poesia — rimas ricas ou pobres, não importa, poesia era e lhe dava o de comer para as três esposas, todas ilegítimas, e os nove filhos, três dos quais de criação. Duas famílias plenamente constituídas, com mulher e filhos cada uma; a terceira, ainda sem rebentos. Rosecler, recente, apenas saída da lua-de-mel, não tivera tempo de gravidez e parto, sendo no entanto a mais cara das três, gastadeira, doida por enfeites, anéis, pulseiras, correntes. Em troca, aquele mimo, mistura de mel e de pimenta.

Prolífero, abundante de trovas e filhos, dos nove, como já foi dito, apenas seis nasceram de seu sangue, três com Romilda, três com Valdelice. Dos três de criação o mais velho viera com Romilda quando a mulata decidiu abandonar o marido no balcão do mercado em Aracaju, e seguir os acordes da viola mágica do solitário e triste trovador. Solitário e triste porque se o vivente está apaixonado por uma determinada fulana, o pensamento nela, enrabichado, mesmo tendo outras com quem vadiar dia e noite, mesmo assim permanece sozinho - apenas a excomungada é capaz de romper tristeza e solidão, servir de companhia e desenfado. Ao vê-lo derrotado, Romilda amoleceu, arrumou a trouxa mas antes explicou: largo o marido mas levo o filho, não me separo dele. Será meu filho, rugiu Capadócio, dramático, a mão sobre o peito. Fossem três ou quatro e ainda assim ele aceitaria a transação, doido para ver Romilda na cama, tocar-lhe os peitos, alisar-lhe as coxas. Traga filho e traga sobrinho, traga a família toda se quiser!

O segundo, de nome Dante em honra do poeta, fora adotado por Capad6cio e Valdelice quando a mãe morrera, deixando-o com seis meses e uma disenteria feroz. Confiá-lo ao pai: repentista e cachaceiro competente, Bernardo Sabença não levava jeito para criar filho, ademais com aquela soltura e fedentina.

Quanto ao terceiro, Preá de apelido devido à voracidade do apetite, dele nada sabiam - parentesco, idade, nome - simplesmente o recolheram nos caminhos do sertão, comendo barro - não fortalece mas não é ruim de gosto. Examinando traços e tendências de Preá, o cabelo loiro, os olhos azuis, as mãos hábeis, rápidas no furtar tudo quanto lhe fica ao alcance dos dedos, Valdelice, psicóloga amadora, atribui-lhe pai fazendeiro ou doutor, um lorde, restando por conta da mãe a pele escura.

Para satisfazer algum curioso de detalhes precisos, acrescente-se que o lar de Ubaldo com a bela Romilda encontra-se na cidade de Lagarto, no Estado de Sergipe, enquanto a residência do casal Valdelice-Capadócio fica no beco das Baraúnas, em Amargosa, na Bahia. Também no Estado da Bahia geme saudades a jovem Rosecler, num subúrbio de Jequié, cidade grande. Ubaldo Capadócio disse adeus às três, até breve, porque quem dá adeus para sempre é defunto na hora do funeral. Lá se foi conhecer e faturar o celebrado Estado de Alagoas onde a vida vale pouco mas a poesia é muito prestigiada, um bom trovador encontra aceitação, ganha dinheiro e, tendo coragem, esquenta o leito de formosas morenas.

A excursão pelo valoroso sertão alagoano ia de vento em popa. Festas, feiras, batizados, até uma Santa Missa em Arapiraca; Ubaldo Capadócio, sua harmônica, sua viola, a maleta com os folhetos de cordel, arrecadando uns trocados, derrubando corações. Por fim atingiu o rio São Francisco e veio vindo pelas margens chegando assim a Piranhas, cidade célebre pela beleza da paisagem e do casario e por ter resistido ao grupo de Lampião em tempos idos, fato cantado em cordéis da época. Pode-se somar a essas razões de orgulho o fato da cidade abrigar dentro da muralha intransponível formada pelas pedras o já citado capitão Lindolfo Ezequiel e a sua legítima esposa Sabô, também citada antes mas sem dúvida merecedora de referência maior pela graça do corpo, o andar de dança, a bunda em despropósito, um abismo, as covas das faces, os lábios que a dita cuja mordia para fazê-los mais vermelhos e também para dizer que sim, que ela estava querendo, que se pudesse, ai!, e mais outros quês e porquês. Sabô não era gente, era a tentação do demônio solta em Piranhas. Mas quem se atrevia? Terra de machos, de topetudos, de valentia comprovada, Lampião que o diga; mas Lindolfo Ezequiel despachara boa quantidade de bravos, a mando e pagamento de ricaços, para ganhar o sustento dele e da mulher cheia de dengues, e alguns outros por conta própria, gratuitamente, apenas por suspeitar de intenções malévolas dos finados em relação à casta Sabô. Na sua opinião de marido, ciumento porém justo, Sabô era inocente pomba sem fel.

Por mais de uma vez o trovador Ubaldo Capadócio vira-se metido em embrulhadas por causa de mulher. Pulou janela, pulou cerca, pulou muro, varou mato cerrado, invadiu casa alheia clamando socorro, mergulhou nas águas do rio Paraguassu, uma vez foi alvejado a queima-roupa, mas Xangô, seu pai, o protegeu e, ademais, sendo o vingador militar e campeão de tiro ao alvo, o perigo de acertar não era grande.

Em Piranhas, apenas chegado, ele foi parar na cama de Sabô, cama que, por casamento de papel passado no padre e no juiz, era também a de Lindolfo Ezequiel, naqueles dias em viagem, para cumprir uma empreitada. Encomenda feita por um deputado levara Lindolfo com sua artilharia a município distante onde o condenado residia. Campo livre, dissera Sabô, apressada, coitadinha. Ainda assim houve quem avisasse o trovador do perigo de morte - o dono da pensão onde se hospedara, também ele dado à poesia de cordel: o melhor é cair fora, meu camarada, Lindolfo Ezequiel tem para mais de trinta mortes sem falar nas primeiras quando ainda não era famoso pistoleiro. Ubaldo não acreditou: esses alagoanos são por demais patriotas e afinal mulher vale a pena, mesmo se correndo grande risco.

Atravessou a porta da casa de Sabô de noitinha, tendo sido visto. Manhã alta ainda lá estava pois a moça andava carente, pedia mais e mais e quanto ao nosso trovador, encontrando parceira de arrelia gostava de demonstrar sua competência - não apenas a força e o fogo, também os requintes pois ele não era nenhum ignorante na matéria, frequentara rameiras qualificadas - inclusive uma francesa - aprendera o bom e o melhor, amante fino estava ali.

Nunca se soube por que Lindolfo Ezequiel arrepiou caminho e desembocou em Piranhas na hora da maior animação na feira semanal, exatamente quando Ubaldo e Sabô se encontravam dando a da despedida, aquela do apuro, da quinta essência, demorada pelo cansaço, e terna pela saudade.

Vinha o pistoleiro de bacamarte em punho, bufando e anunciando morte precedida de castração em praça pública. O povaréu foi se juntando atrás dele, animadíssimo com a proclamação; parecia acompanhamento de procissão de Senhor Morto. Lindolfo meteu o pé na porta, Sabô reconheceu os modos: É meu marido, disse, e riu de manso.

Rápido, com o treino de outras vezes, Ubaldo buscou com que tapar a nudez pois não era exibido, em público sempre andava decentemente trajado. Na pressa só encontrou a peça superior do baby-doll cor-de-rosa de Sabô, enfiou pelo pescoço. Sendo um galalau, não chegava ao umbigo a linda veste. Mas nu, como inventaram, não estava. Saltou a janela quando o corno de revólver em punho invadia o quarto: Sabô, vítima inocente, casta esposa, acusava o trovador de tentativa de sedução e estupro. Quanto a ela, resistira, heroica, e exigia vingança. Vou arrancar os ovos do canalha e depois dou um tiro na cabeça dele, fique descansada, minha filha, lavo sua honra em sangue.

Atravessaram assim a feira de Piranhas. Na frente, o trovador Ubaldo Capadócio revestido de curta camisola feminina, o saco à mostra, os bagos balançando, condenados. Um pouco atrás, armado até os dentes, o pistoleiro—na mão a faca de capar porcos, afiadíssima. A seguir, o povo, querendo ver. Cansado da noite de festa e da manhã de despedida, Ubaldo Capadócio perdia terreno, cada vez mais próximos o matador e a faca. Um frio nos bagos, ai !

No meio do caminho, a feira dos pássaros, quantidade de gaiolas umas sobre as outras, fechava a passagem. Na velocidade e no medo, não pôde Ubaldo desviar-se, bateu-se contra o muro de gaiolas e viram-se os pássaros, dezenas e dezenas, libertados, em revoada. Juntaram-se todos, incontáveis, das pombas-rolas aos sabiás, dos sofrês aos cardeais, dos canários às cuiubas, e pela leve camisola suspenderam no ar Ubaldo Capadócio, levando-o pelos céus. À frente do bando iam doze araras abrindo caminho através das nuvens, conduzindo o trovador, leve como a poesia.

Lindolfo Ezequiel ficou ali plantado em meio à feira, onde se encontra até hoje, convertido em magnífico pé de chifres, chifriseiro mais frondoso do Nordeste. Fornece aos artesões matéria-prima para pentes, anéis, objetos variados, copos de chifres para cachaça. Assim, o antigo pistoleiro transformou-se em objeto de real utilidade pública. Quanto a Sabô passou a pertencer à comunidade, sob a imediata proteção do coronel Jarde Ramalho, que acompanhara atentamente perseguição e milagre.

Os pássaros voaram sobre as Alagoas levando Ubaldo Capadócio, os bagos salvos, ao vento. Quando cruzaram a fronteira de Sergipe depositaram-no num convento de freiras que o acolheram com cortesia e não lhe fizeram perguntas.



(Ilustração: Carybé - O ovo da Ema, 1976)

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