sexta-feira, 21 de agosto de 2020

SOBRE A GAROTA CEM POR CENTO PERFEITA QUE ENCONTREI EM UMA MANHÃ ENSOLARADA DE ABRIL, de Haruki Murakami

 


Em uma manhã ensolarada de abril, passei pela garota cem por cento perfeita em uma dessas ruas menos conhecidas do bairro de Harajuku. 

Para ser sincero, ela não era tão bonita assim. Nada nela chamava muita atenção. Nem estava tão bem-vestida. O cabelo dela estava bagunçado, com as marcas de quem acabara de acordar e, quanto à idade, também não era jovem. Devia estara casa dos trinta. Ou seja, nem era propriamente uma “garota”. 

No entanto, mesmo separados por cinquenta metros, tive a mais absoluta certeza: ela era a garota cem por cento perfeita para mim. Desde o instante em que a vi, meu coração disparou, agitado feito terremoto, e minha boca ficou seca como o deserto. 

É possível que você tenha seu tipo ideal de garota. De tornozelos finos, ou de olhos grandes, ou de dedos graciosos, ou que, sem nenhum motivo aparente, lhe chame atenção apenas por ela fazer a refeição sem pressa. Também tenho o meu tipo. Às vezes, comendo num restaurante, me pego observando fixamente o formato do nariz da garota sentada na mesa ao lado. 

Mas ninguém é capaz de definir sua garota cem por cento perfeita. Apesar de apreciar um nariz feminino, não consigo descrever o formato do nariz dela. Aliás, não lembro sequer se ela tinha um nariz. A única coisa de que me lembro é que ela não era especialmente bonita. É estranho. 

— Ontem, andando na rua, passei pela garota cem por cento perfeita — comentei com alguém. 

— É mesmo? — a pessoa respondeu. — Bonita? 

— Não exatamente. 

— Mas pelo menos fazia o seu tipo? 

— Aí é que está. Não consigo me lembrar de nada; nem do formato dos olhos, nem se os seios eram grandes ou pequenos. 

— Que estranho! 

— Sem dúvida. 

— E então? — ele indagou, com ar entediado. — O que fez? Falou com ela? Você a seguiu? 

— Nada disso — respondi. — Apenas passei por ela. 

Ela caminhava do sentido leste para o oeste, e eu, do oeste para o leste. Era uma agradável manhã de abril. 

Eu queria muito ter conversado com ela nem que fosse só por meia hora. Saber sobre sua vida, e também lhe contar da minha. Queria, sobretudo, ter esvendado os caprichos do destino que nos levaram a passar um pelo outro em uma rua pouco conhecida de Harajuku naquela manhã ensolarada de abril de 1981. Tudo isso deveria guardar doces segredos, como a máquina de um relógio antigo construído em tempos de paz. 

Depois de conversarmos sobre isso, almoçaríamos em algum lugar e, quem sabe, assistiríamos a um filme do Woody Allen e beberíamos alguns drinques num bar de hotel. E, se tudo desse certo, terminaríamos na cama. 

As possibilidades batiam na porta do meu coração. 

A distância entre nós se reduziu para quinze metros. 

Como deveria abordá-la? 

— Bom dia. Você teria meia hora para conversar comigo? 

Ridículo! Eu ficaria parecendo um vendedor de seguros. 

— Com licença, você conhece alguma lavanderia vinte e quatro horas por aqui? 

Não menos ridículo. Dizer isso sem ter sequer uma muda de roupas na mão? Quem cairia nessa conversinha? 

Talvez fosse o caso de falar a verdade: 

— Bom dia. Você é a garota cem por cento perfeita para mim. 

Não. Também não. Ela não iria acreditar e, mesmo que acreditasse, poderia se recusar a falar comigo. Poderia ter me dito: 

— Mesmo que eu seja cem por cento perfeita para você, você não é perfeito para mim. Sinto muito. 

Era bastante provável. E, se isso acontecesse, eu ficaria arrasado. Talvez nunca me recuperasse do choque. Tenho trinta e dois anos e ser adulto traz esse tipo de coisas. 

Passei por ela em frente à floricultura. Senti na pele o toque de uma brisa quente. O asfalto da calçada estava úmido e o ar cheirava a rosas. Não consegui falar com a garota. Ela usava um suéter claro e carregava um envelope branco ainda sem selo na mão direita. Uma carta para alguém. É possível que tenha ficado a noite toda acordada, escrevendo a carta, e isso explicaria seu olhar sonolento. Todos os seus segredos deviam estar dentro daquele envelope. 

Quando olhei para trás, depois de caminhar alguns passos, ela já havia desaparecido no meio da multidão. 

Claro que hoje sei exatamente o que devia ter dito naquele dia. Ainda assim, teria sido um longo discurso e creio que eu acabaria me enrolando no final. Minhas ideias são sempre desprovidas de senso prático. 

De todo modo, meu discurso teria começado com “Era uma vez” e terminado com “Você não acha essa história triste?”. 

Era uma vez, em algum lugar, num longínquo passado, um rapaz e uma garota. Ele tinha dezoito anos, e ela, dezesseis. O rapaz não era muito bonito, tampouco a garota era uma beldade. Eram comuns, solitários, como muitos jovens que encontramos por aí. Mas acreditavam de verdade que em algum lugar deste mundo existia a pessoa que formaria o par cem por cento perfeito com cada um deles. Acreditavam em milagres. E o milagre tomou forma. 

Certo dia, casualmente, se esbarraram em uma esquina. 

— Que surpresa! Procurei por você durante toda a minha vida. Pode não acreditar, mas você é a garota cem por cento perfeita para mim — ele disse para ela. 

A garota respondeu: 

— Pois saiba que você é o rapaz cem por cento perfeito para mim. Exatamente do jeito que eu sempre imaginei. Devo estar sonhando! 

Sentaram então em um banco no parque, se deram as mãos e a conversa fluiu espontânea, sem indícios de se tornar enfadonha. Não eram mais solitários. Cada qual encontrou o seu parceiro cem por cento ideal. Nada poderia ser tão maravilhoso quanto aquilo. E ainda era um sentimento recíproco. 

Mas uma pequena dúvida invadiu o coração deles: será que era possível um sonho se materializar daquela maneira, com tanta facilidade? 

Em uma breve pausa da conversa, o rapaz propôs: 

— Que tal fazermos um teste? Se formamos de fato um casal cem por cento perfeito, com certeza voltaremos a nos encontrar em algum lugar. Quando isso acontecer e nos certificarmos de ser cem por cento perfeitos um para o outro, então poderemos nos casar. O que acha? 

— Acho que é isso mesmo que devemos fazer — ela respondeu. 

Então, seguiram seus rumos. Ela para o leste, ele para o oeste. 

Mas, para falar a verdade, o teste era totalmente desnecessário. Eles não deviam ter feito isso, porque eram um casal cem por cento perfeito, e o encontro deles já era um milagre. No entanto, os dois eram jovens demais para saber disso. Então, acabaram à mercê das ondas insensíveis e cruéis do destino. 

No inverno de certo ano, ambos foram acometidos por um terrível surto de influenza e, depois de ficarem várias semanas entre a vida e a morte, as lembranças que tinham do passado se apagaram. Quando enfim se recuperaram, estavam com o cérebro tão vazio quanto o cofrinho de D. H. Lawrence. 

Mas, por serem jovens inteligentes e perseverantes, com esforço e determinação reaprenderam o necessário e revitalizaram seus sentimentos até conseguirem voltar à vida em sociedade. Com todas as bênçãos, se tornaram cidadãos equilibrados, capazes de fazer as baldeações de metrô e de postar uma carta registrada no correio. Retomaram ainda a capacidade que tinham para amar, na ordem de setenta e cinco por cento, ou, quem sabe, de até oitenta e cinco por cento. 

O tempo passou rápido e, num piscar de olhos, o rapaz completava trinta e dois anos, e a garota, trinta. 

Em uma manhã ensolarada de abril, ele caminhava pelo bairro de Harajuku, do sentido oeste para o leste, procurando um lugar para tomar o primeiro café do dia, enquanto a garota, na mesma rua, vinha na direção oposta, procurando um correio onde pudesse comprar selos. Os dois se encontraram no meio do caminho. Uma tênue faísca iluminou por alguns segundos o coração deles, trazendo de volta as lembranças até então esquecidas. Com um aperto no peito, cada um soube de imediato: 

É a garota cem por cento perfeita para mim. 

É o rapaz cem por cento perfeito para mim. 

Mas a luz das memórias logo começou a ceder e seus pensamentos já não tinham a mesma clareza de catorze anos atrás. Passaram um pelo outro sem trocar palavras e desapareceram na multidão. Para sempre. 

Você não acha esta história triste? 

É, é isso mesmo. Era isso que eu devia ter dito a ela. 



(O elefante desaparece, tradução de Lica Hashimoto) 



(Ilustração: Adrien-Jean Le Mayeur de Merpres )





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