domingo, 9 de agosto de 2020

A EDUCAÇÃO NO BRASIL NO INÍCIO DOS ANOS 50, de Richard Feynman


Em relação à educação no Brasil, tive uma experiência muito interessante. Eu estava dando aulas a um grupo de estudantes para se tornarem professores, uma vez que naquela época não havia muitas oportunidades no Brasil para pessoal qualificado em ciências. Esses estudantes já tinham feito muitos cursos, e esse deveria ser o mais avançado em eletricidade e magnetismo, equações de Maxwell, e assim por diante. 

A universidade ocupava diversos prédios na cidade, e o curso que eu ministrava era dado em um prédio com vista para o mar. 

Descobri um fenômeno muito estranho: eu podia fazer uma pergunta e os alunos respondiam imediatamente. Mas se fizesse a pergunta de novo - o mesmo assunto e a mesma pergunta, pelo que eu sei -, eles simplesmente não conseguiam responder! Por exemplo, uma vez eu estava falando sobre luz polarizada e dei a eles alguns filmes polaroides. O polaroide só deixa passar a luz cujo vetor de campo elétrico esteja em uma determinada direção; então expliquei como se pode dizer em qual direção a luz está polarizada, observando se o polaroide está escuro ou claro. 

Primeiro pegamos duas tiras de polaroide e as giramos até que elas deixassem passar a maior parte da luz. Podíamos, então, dizer que as duas fitas estavam deixando passar a luz polarizada na mesma direção - o que passou por uma tira de polaroide também poderia passar pela outra. Mas, então, perguntei como se poderia dizer a direção absoluta da polarização a partir de um único polaroide. 

Eles não faziam a menor ideia. 

Eu sabia que isto exigia um pouco de engenhosidade; então dei uma pista: 

"Olhe a luz refletida da baía lá fora." Ninguém respondeu nada. 

Então eu prossegui: "Vocês já ouviram falar no ângulo de Brewster?" 

- Sim, senhor! O ângulo de Brewster é o ângulo para o qual a luz refletida por um meio que tem um índice de refração é completamente polarizada. 

- E em que direção a luz fica polarizada quando é refletida? 

-A luz fica polarizada perpendicularmente ao plano de reflexão, senhor. - Mesmo hoje em dia, tenho de pensar; eles sabiam responder na hora! Eles sabiam até que a tangente do ângulo era igual ao índice de refração! 

Eu disse "Bem?" 

Nada ainda. Eles simplesmente haviam me dito que a luz refletida por um meio com um índice de refração, tal como a baía lá fora, era polarizada: eles haviam me dito até em qual direção ela estava polarizada. 

Eu disse: "Olhem a baía lá fora, pelo polaroide. Agora girem o polaroide." 

- Ah! Está polarizada! - eles disseram. 

Depois de muita investigação, finalmente descobri que os estudantes tinham decorado tudo, mas não sabiam o que queria dizer. Quando ouviram "luz que é refletida por um meio com um índice de refração", não sabiam que isso significava um material como a água. Eles não sabiam que "a direção da luz" é a direção na qual você vê alguma coisa quando está olhando, e assim por diante. Tudo estava totalmente decorado, mas nada havia sido traduzido em palavras que fizessem sentido. Assim, se eu perguntasse o que é o ângulo de Brewster, eu estava entrando no computador com a senha correta. Mas se digo "Observe a água", nada acontece - eles não têm nada que responda ao comando "observe a água". 

Depois participei de uma aula na faculdade de engenharia. A aula foi assim: "Dois corpos ... são considerados equivalentes... se torques iguais... produzirem ... acelerações iguais. Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem acelerações iguais." Os estudantes estavam todos sentados lá fazendo anotações e, quando o professor repetia a frase, checavam para ter certeza de que haviam anotado certo. Então eles anotavam a próxima frase, e a outra, e a outra. Eu era o único que sabia que o professor estava falando sobre objetos com o mesmo momento de inércia, e era difícil descobrir isso. 

Eu não conseguia entender como eles aprenderiam qualquer coisa daquela maneira. Falava-se sobre momentos de inércia, mas não se discutia quão difícil é empurrar uma porta e abri-la quando se coloca muito peso longe do eixo, em comparação quando você coloca perto da dobradiça - nada! 

Depois da aula, falei com um estudante: "Vocês fizeram uma porção de anotações - o que vão fazer com elas?" 

- Ah, nós as estudamos - ele diz. - Nós teremos uma prova. 

- E como será a prova? 

- Muito fácil. Eu posso dizer agora uma das questões. - Ele olha em seu caderno e diz - "Quando dois corpos são equivalentes?" E a resposta é: "Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem acelerações iguais." - Então, você vê, eles podiam passar nas provas, "aprender" essa coisa toda e não saber nada, exceto o que eles tinham decorado. 

Assim fui a um exame de admissão para a faculdade de engenharia. Era uma prova oral e tive permissão para presenciá-la. Um dos estudantes foi absolutamente fantástico: respondeu tudo certinho! Os examinadores perguntaram a ele o que era diamagnetismo e ele respondeu perfeitamente. Depois perguntaram: "Quando a luz chega formando um ângulo com a vertical e atravessa uma lâmina de material de uma determinada espessura, e com um certo índice de refração N, o que acontece com a luz?" 

- Ela aparece paralela a si própria, senhor - e deslocada. 

- E em quanto ela é deslocada? 

- Não sei, senhor, mas posso calcular. -Então ele calculou. Ele era muito bom. Mas, nessa época, eu tinha minhas suspeitas. 

Depois da prova, fui até esse brilhante jovem e expliquei que eu era dos Estados Unidos e que queria fazer algumas perguntas a ele que não afetariam, de forma alguma, os resultados da prova. A primeira pergunta que fiz foi: 

"Você pode me dar algum exemplo de uma substância diamagnética?" 

- Não. 

Aí perguntei: "Se esse livro fosse feito de vidro e eu estivesse olhando através dele alguma coisa sobre a mesa, o que aconteceria com a imagem se eu o inclinasse?" 

- Ela seria defletida, senhor, em duas vezes o ângulo que o senhor tivesse girado o livro. 

Perguntei: "Você não fez confusão com um espelho, fez?" 

- Não senhor! 

Ele havia acabado de afirmar na prova que a luz ficaria deslocada, paralela a si própria, e, portanto, a imagem se moveria para o lado, mas não ficaria alterada de ângulo algum. Havia até mesmo calculado em quanto ela ficaria deslocada, mas não percebeu que um pedaço de vidro é um material com um índice de refração e que o cálculo dele se aplicava à minha pergunta. 

Ministrei um curso na faculdade de engenharia sobre métodos matemáticos na física, no qual tentei demonstrar como resolver os problemas por tentativa e erro. É algo que as pessoas geralmente não aprendem; então comecei com alguns exemplos simples para ilustrar o método. Fiquei surpreso porque apenas cerca de um entre cada dez alunos fez a tarefa. Então, preparei uma grande aula sobre como eles realmente deveriam tentar fazer as coisas e não só ficar sentados observando-me fazê-las. 

Depois da aula, alguns estudantes formaram uma pequena delegação e vieram até mim, dizendo que eu não havia entendido os antecedentes deles, que podiam estudar sem resolver os problemas, que já haviam aprendido aritmética e que essa coisa toda estava abaixo do nível deles. 

Então prossegui com as aulas e, independentemente de quão complexo ou obviamente avançado o trabalho estivesse se tornando, eles nunca punham a mão na massa. É claro que eu já havia notado o que estava acontecendo: eles não conseguiam fazer a tarefa! 

Uma outra coisa que nunca consegui com que eles fizessem foi perguntas. Por fim, um estudante explicou-me: "Se eu fizer uma pergunta para o senhor durante a palestra, depois todo mundo vai ficar me dizendo: 'Por que você está fazendo a gente perder tempo na aula? Nós estamos tentando aprender alguma coisa, e você fica interrompendo, fazendo perguntas.'" 

Era como se fosse um processo de tirar vantagem de alguém, no qual ninguém sabe o que está acontecendo e humilham outros como se eles realmente soubessem. Todos fingem que sabem, e se um estudante faz uma pergunta, admitindo por um momento que as coisas estão confusas, os outros adotam uma atitude de superioridade, agindo como se nada fosse confuso, dizendo àquele estudante que ele está desperdiçando o tempo dos outros. 

Expliquei a importância de se trabalhar em grupo, para discutir as dúvidas, analisá-las, mas também não o faziam porque achavam que se exporiam se tivessem de perguntar alguma coisa a outra pessoa. Era uma pena! Eles, pessoas inteligentes, faziam todo o trabalho, mas adotaram essa estranha forma de pensar, essa forma esquisita de auto propagar a "educação", que é inútil, definitivamente inútil! 

Ao final do ano acadêmico, os estudantes pediram-me para dar um seminário sobre minhas experiências com o ensino no Brasil. No seminário, haveria não só estudantes, mas também professores e funcionários do governo. Assim, prometi que diria o que quisesse. Eles disseram: "É claro. Este é um país livre." 

Aí entrei, levando os livros de física elementar que eles usaram no primeiro ano de faculdade. Eles achavam esses livros bastante bons porque tinham diferentes tipos de letra - negrito para as coisas mais importantes para se decorar, letras normais para as coisas menos importantes, e assim por diante. 

Imediatamente, alguém disse: "Você não vai falar sobre o livro, vai? O homem que o escreveu está aqui, e todo mundo acha que esse é um bom livro." - Você me prometeu que eu poderia dizer o que quisesse. 

O auditório estava repleto. Comecei definindo ciência como um entendimento do comportamento da natureza. Então, perguntei: "Qual será um bom motivo para ensinar ciência? É claro que país algum pode considerar-se civilizado a menos que ... blá, blá, blá." Eles estavam todos concordando comigo, porque sei que é assim que eles pensam. 

Então eu disse: "Isso, é claro, é um absurdo. Por que motivo temos de nos sentir em pé de igualdade com outro país? Temos de fazer as coisas por um bom motivo, por uma razão sensata; não apenas porque os outros países o fazem." Depois, falei sobre a utilidade da ciência e sua contribuição para a melhoria da condição humana, e toda essa coisa - eu realmente os provoquei um pouco. 

Daí disse: "O principal propósito da minha apresentação é provar aos senhores que não se está ensinando ciência alguma no Brasil!" 

Eu os vejo tremer, pensando: "O quê? Nenhuma ciência? Isso é loucura! Nós temos todas essas aulas." 

Então digo que uma das primeiras coisas que me deixaram chocados quando cheguei ao Brasil foi ver garotos da escola elementar em livrarias, comprando livros de física. Havia tantas crianças aprendendo física no Brasil, começando muito mais cedo do que as crianças nos Estados Unidos, que era estranho que não houvesse muitos físicos no Brasil - por que isso acontece? Há tantas crianças dando duro e não há resultados. 

Então fiz uma analogia com um erudito grego que ama a língua grega, que sabe que em seu país não há muitas crianças estudando grego. Mas ele vai a outro país, onde fica feliz em ver todo mundo estudando grego - mesmo as crianças pequenas das escolas elementares. Ele vai ao exame de um estudante que está se formando em grego e pergunta-lhe: "Quais eram as idéias de Sócrates sobre a relação entre a Verdade e a Beleza?" - e o estudante não consegue responder. Então ele pergunta ao estudante: "O que Sócrates disse a Platão no Terceiro Simpósio?" O estudante fica feliz e prossegue: "Disse isso, aquilo, aquilo outro" -ele repete tudo o que Sócrates disse, palavra por palavra, em um grego muito bom. 

Mas, no Terceiro Simpósio, Sócrates estava falando exatamente sobre a relação entre a Verdade e a Beleza! 

O que esse erudito grego descobre é que os estudantes do outro país aprendem grego aprendendo primeiro a pronunciar as letras, depois as palavras e então as sentenças e os parágrafos. Eles podem recitar, palavra por palavra, o que Sócrates disse, sem perceber que aquelas palavras em grego realmente significam algo. Para o estudante, elas não passam de sons artificiais. Ninguém jamais as traduziu em palavras que os estudantes possam entender. 

Eu disse: "É essa a impressão que tenho quando vejo os senhores ensinarem 'ciência' para as crianças aqui no Brasil." (Um soco forte, certo?) 

Então ergui o livro de física elementar que eles estavam usando. "Não são mencionados resultados experimentais em lugar algum neste livro, exceto em um lugar onde há uma bola, descendo um plano inclinado, onde ele diz a distância que a bola percorreu em um segundo, dois segundos, três segundos, e assim por diante. Os números têm erros - ou seja, se você olhar, você pensa que está vendo resultados experimentais, porque os números estão um pouco acima ou um pouco abaixo dos valores teóricos. O livro fala até sobre ter de corrigir os erros experimentais - muito bem. No entanto, uma bola descendo em um plano inclinado, se realmente for feito isso, tem uma inércia para entrar em rotação e, se você fizer a experiência, produzirá cinco sétimos da resposta correta, por causa da energia extra necessária para a rotação da bola. Dessa forma, o único exemplo de 'resultados' experimentais é obtido de uma experiência falsa. Ninguém fez rolar tal bola, ou jamais teriam obtido tais resultados!" 

"Descobri mais uma coisa", continuei. "Ao folhear o livro aleatoriamente e ler uma sentença de uma página, posso mostrar qual é o problema, isto é, que não há ciência, mas sim memorização, em todos os casos. Portanto, tenho coragem o bastante para folhear as páginas agora na frente deste público, colocar meu dedo em uma página, ler e provar para os senhores." 

Fiz isso. Brrrrrrrup - coloquei meu dedo em uma página e comecei a ler: 

"Triboluminescência. Triboluminescência é a luz emitida quando os cristais são friccionados ..." 

Digo: "E aí, você fez ciência? Não! Apenas foi dito o que uma palavra significa em termos de outras palavras. Não foi dito nada sobre a natureza, quais os cristais que produzem luz quando você os fricciona, por que eles produzem luz. Alguém viu algum estudante ir para casa e verificar isto experimentalmente? Ele não pode." 

"Mas, se em vez disso, estivesse escrito: 'Quando você pega um torrão de açúcar e o pressiona com um alicate no escuro, pode-se ver um clarão azulado. Alguns outros cristais também fazem isso. Ninguém sabe o motivo. O fenômeno é chamado triboluminescência.' Aí alguém vai para casa e tenta. Nesse caso, há uma experiência científica." Usei aquele exemplo para chamar a atenção deles, mas não faria qualquer diferença em que página eu pusesse meu dedo; o livro era desse jeito em quase todas as páginas. 

Por fim, disse que não conseguia entender como alguém podia ser educado neste sistema autopropagante, no qual as pessoas passam nas provas e ensinam os outros a passar nas provas, mas ninguém sabe nada. "No entanto", eu disse, "devo estar errado. Há dois estudantes na minha sala que se saíram muito bem, ademais, um dos físicos que conheço foi inteiramente educado no Brasil. Assim, deve ser possível para algumas pessoas encontrar seu caminho neste sistema, ruim como ele é." 

Bem, depois de apresentar meu seminário, o chefe do Departamento de Educação em Ciências levantou-se e disse: "O Sr. Feynman nos falou algumas coisas que são difíceis de ouvir, mas parece que ele realmente ama a ciência e foi sincero em suas críticas. Assim sendo, acho que devemos prestar-lhe atenção. Vim aqui sabendo que temos algumas fraquezas em nosso sistema de educação; o que aprendi é que temos um câncer!" - e sentou-se. 

Isso deu liberdade a outras pessoas para falar, e houve uma grande agitação. Todo mundo estava se levantando e fazendo sugestões. Os estudantes reuniram um comitê para mimeografar as palestras, antecipadamente, e organizaram outros comitês para fazer isso e aquilo. 

Então aconteceu algo que eu não esperava de forma alguma. Um dos estudantes se levantou e disse: "Eu sou um dos dois estudantes aos quais o Sr. Feynman se referiu ao fim de seu discurso. Não estudei no Brasil; estudei na Alemanha e acabo de chegar ao Brasil." 

O outro estudante que havia se saído bem em sala de aula tinha algo semelhante a dizer. O professor que eu havia mencionado se levantou e disse: "Estudei aqui no Brasil durante a guerra quando, felizmente, todos os professores haviam abandonado a universidade: então aprendi tudo lendo sozinho. Dessa forma, na verdade, não estudei no sistema brasileiro." 

Eu não esperava aquilo. Sabia que o sistema era ruim, mas 100% ruim era terrível! 

Uma vez que eu havia ido ao Brasil através de um programa patrocinado pelo governo dos Estados Unidos, o Departamento de Estado pediu-me para escrever um relatório sobre as minhas experiências no Brasil, e escrevi os principais pontos do discurso que havia acabado de fazer. Mais tarde, descobri, por vias secretas, que a reação de alguém no Departamento de Estado foi: "Isso prova como é perigoso mandar alguém tão ingênuo para o Brasil. Pobre rapaz; ele só pode causar problemas. Ele não entendeu os problemas." Bem pelo contrário! Acho que essa pessoa no Departamento de Estado era ingênua em pensar que, porque viu uma universidade com uma lista de cursos e suas descrições, as coisas funcionavam. * 



(O senhor está brincando, sr. Feynman!, tradução de Cláudia Bentes David) 



*Nota da Tradutora: Desde a famosa visita de Richard Feynman ao Brasil até os dias de hoje, muita coisa mudou no ensino das ciências no Brasil. Em particular, o ensino de física nas universidades brasileiras, que realizam pesquisas em física teórica e experimental, quase todas elas universidades federais ou estaduais, equipara-se aos bons centros de ensino do mundo ocidental. Hoje em dia, nossos melhores alunos podem realizar seus trabalhos de mestrado e doutorado aqui mesmo. Muitos pesquisadores brasileiros são internacionalmente reconhecidos e receberam prêmios por suas pesquisas. A física brasileira moderna, não obstante as dificuldades que um país como o nosso apresenta, é de nível internacional. Em outras áreas, como por exemplo na pesquisa agropecuária ou alguns ramos da genética, os pesquisadores brasileiros estão na vanguarda. Embora tenhamos ainda um caminho longo a ser percorrido, a atmosfera encontrada por Feynman em sua visita ao Brasil, felizmente, já não existe mais. 


(Ilustração: Raphael - The School of Athens – detail)

 

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