terça-feira, 18 de agosto de 2020

POEMAS PARA LER EM VOZ ALTA, de Cláudio Willer

 


1



EROS

viajantes inertes

imersos no silêncio dessas horas

quando o tempo não é mais tempo

porém lassidão

e nossos corpos arquejantes construções

envoltas em nudez

testemunhada apenas pelos objetos da casa, os quadros na parede, os pesados móveis, os livros e suas lombadas, vasos de plantas, espelhos, e mais a negra silhueta dos prédios recortados contra a janela

rosto cego da cidade agora adormecida a observar-nos fixamente

eu bruxo, você sibila

que deuses cultuamos?

parados na pausa entre sobressaltos

que alquimia inventamos?

o peso que nos paralisa e adormece

não é cansaço

porém outra coisa

sensação do profundo

o obscuro sentir

do mundo que respira

pelos poros da escuridão

e nós, manietados pelo prazer, apenas conscientes

da presença dos objetos da casa, móveis, vasos de plantas, livros, almofadões

espalhados pelo chão, nossas roupas jogadas ao acaso, mais o negro recorte dos prédios

por trás da janela,

perfil da paisagem urbana, impassível testemunha

mal sabemos quem somos

lembramo-nos apenas dos nossos nomes

restam-nos o repouso e uma intuição

desperta para o morno mundo de nossos corpos

nunca, nunca havia sentido isso antes assim



2



quando o calor da noite de verão

e a chuva da noite de verão

se encontram

e são a mesma torrente de vida a escorrer por nossas artérias

então

reconhecemo-nos pelas carícias

um arco-íris pode sentar-se à cabeceira da cama

uma nuvem pode servir de cobertor

uma paisagem de sol nascente

em uma praia pontilhada de tendas de campistas

reflete-se no lago luminoso do seu ventre

a montanha e sua encosta recoberta de matagais

onde certa vez nos perdemos entre nascentes de rios

projetam sua sombra em suas coxas

planícies batidas pelo vento alísio

que atravessa o continente, o universo

são nossa imaginação febril



3



a colcha era verde

e a lâmpada azulada

costumavam ouvir músicas lentas e suaves

achavam que a estante repleta de livros tinha um ar solene

e gostavam disso

de qualquer coisa

que sugerisse um ambiente sobrenatural

eram rápidos, muito rápidos em seus jogos intelectuais

serviam-se em taças transbordantes, borbulhantes

e tudo era praticado com uma certa indiferença

com a naturalidade de há tanto tempo

termos nos habituado a estar juntos, a ficar nus, a beijar-nos na boca

deitar-nos sobre a colcha verde do sofá, à luz azul da lâmpada

ao lado da estante de livros compondo um clima de ritual

sugestão de coisa esotérica

decerto olhavam-se

e ficavam de voltar a encontrar-se outro dia

(as noites passavam depressa)



4



nossos hábitos delicados e perversos

nossas diversões meio delinquenciais, meio filosóficas

nossos prazeres íntimos e raros

as conversas irisadas de memória

gestos aos poucos entretecendo-se

na plenitude da nudez familiar

enquanto íamos nos transformando

nos pulsantes personagens crepusculares

de nossas narrativas

rodeados por um silêncio vivo, um tempo latejante

da noite percorrida

para não chegar a lugar algum

durante o dia

éramos simples mortais



5



é hora de dizer claramente como são as coisas:

você abre suas portas suas pernas seus braços sua boca seu corpo

você se escancara

eu embarco em você

eu me engajo me prendo me agarro navego em você

plano em um jogo de arriscado equilíbrio

atiro-me em seus abismos

singro suavemente sua brisa

enfrento seus maremotos

viajo por sua velocidade

perco-me no emaranhado de seu pântano, no labirinto de terra e de areia,

de água do mar e de água doce

- nós somos o pântano e somos o labirinto

cego-me em sua brancura

alço-me em sua ondulação

você é o planeta onde pouso

a nuvem em que me envolvo

aura estelar, dissipação de caudas de cometas

leva-me e me conduz

nessa dança desarticulada

para mais longe para o alto para o

profundo

me arrasta

amor oxímoro

amor, palavra de paradoxos



6



seus olhos têm muitas cores

que refletem o brilho de cada hora

estranhas palavras

atravessam nossas conversas

É PRECISO QUE SEJAMOS MODERNOS COMO O AMOR

mas não sei

se não recuaremos

confundidos diante da visão da nossa crueldade



7



ah, mas você não viu nada

essa festa para a qual me convida

só pode ser na clareira do matagal em chamas

no subsolo do edifício que desaba em escombros

pois o verdadeiro amor, o amor somado ao prazer, é outra coisa

overdose, êxtase infernal

que fatalmente nos destruirá



(Ilustração: Edvard Munch - le baiser - 1895)


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