segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

CANTO-TE, de Ana Hatherly








Canto-te para que tu definitivamente

existas

Canto o teu nome porque só as coisas cantadas

realmente são e só o nome pronunciado inicia

a mágica corrente

Canto o teu nome como o homem fazia eclodir

o fogo do atrito das pedras

Canto o teu nome como o feiticeiro invoca

a magia do remédio

Canto o teu nome como um animal uiva

de

Como os animais pequenos bebem nos regatos depois

das grandes feras

Canto-te

e tu definitivamente existes nos meus olhos

Sempre abertos porque é sempre e os meus olhos

são os olhos da criança que nós somos sempre

diante da imensidão do teu espaço




Canto-te

e os meus olhos sempre abertos são a pergunta

instante pendente de eu te interrogar




e interrogo as coisas em seu ser noctumo

em seu estar sombriamente presentes na tua claridade

obscura

E como é sempre

meus olhos abertos prescrutam-te




símbolo de tudo o que me foge

como apertar o ar dentro das mãos

e querer agarrar-te




oh substância

Canto-te




com a fragilidade de tudo que existe perante

uma eternidade demasiado nocturna para os nossos

olhos infantis perante a tua antiguidade

futura

E a nossa voz é uma pequena onda no dorso

do teu oceano de matéria

Um leve arrepio apenas na espantosa espessura

de teu éter

Ah no ar é que tudo acontece

no ar nocturno das idades esquecidas

que previamente desconheceremos

No espaço é que tudo acontece

e o espaço é uma grande muito quieta

onde os nossos olhos penetram

no não sabermos até onde

ali

além

no além onde tudo acontece

Oh

oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável

e sermos nós a respiração da

teu bafo ritmado

imperceptível distância

Oh augusta majestática dignidade do silêncio

Oh impassibilidade da tua mecânica celeste

Oh organismo primeiro de todos os fins secretos

da compreensão das coisas

Oh inorgânico organismo dos seres

que se devoram

Oh diz

a quem servimos nós de pasto

Canto-te

como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome

Canto-te e grito

para que a poeira que se infiltra em todas as

coisas se erga de ti como um plâncton

Oh Madre

matriz das criaturas inferiores que rastejam

a teus pés cobertas de pó

esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos

Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó

Oh que desintegras tudo e tudo tu constróis

Ah como nós lambemos tuas duras mãos

Oh que fustigas nossos olhos com tua sombra

Enorme

Oh

que deixas tanto espaço para o silêncio

das mil pétalas

dos mil braços esplendorosos em seu abandono

dos murmúrios

dos afagos

sangue derramado sobre o mundo

Oh

Porque és sempre tão premente?

e sempre estás ausentemente

na tua constância em todas as coisas?




Oh sono

Oh morte tão desejada e longa

mágica povoada de átomos

milhões de espíritos enchem o teu sopro

E penetras em nós como uma bala

E tudo morre quando tu chegas

E tudo se dilui e se transforma em ti

alada presciência de tudo acontecer

tão longe de nós e tão antigamente

e tudo nos ultrapassar com soberana indiferença

ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume

Oh

brilha para dentro de mim

Acende teus luzeiros em meus olhos

Ergue teus braços oh prenhe de tudo

Oh vaso

Oh via láctea de nos amamentares com teu leite

de sombra

Oh úbere e pródiga

Aleita tua ninhada faminta

Grande fera luzidia

Grande mito

Grande deus antigo

Oh urna onde todos dormimos

Oh

Meus olhos choram já de tanto prescrutar-te

E canto-te

Canto-te

Para que tu existas

E eu não veja mais nada além de ti

E nada mais deseje senão que venhas outra vez

levar-me para dentro do teu ventre

de nunca mais haver

E nada mais haver que



Oh tu definitivamente além




(Poemas de Eros Frenético e Contemporâneos)





(Ilustração: João Ruas)











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