sexta-feira, 18 de dezembro de 2015
CONTRABANDISTA, de João Simões Lopes Neto
1
— Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do
Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha
nos banhados do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a
cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão
das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiunos
acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca
perdeu atalho, nunca desandou cruzada!...
Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do
açouta-cavalo florescido, lá́ o dos trevais, o das
guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo
ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no
casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto
ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com
sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que
peleou na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E
sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga,
como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.
Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre,
por ser muito de mãos abertas.
Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de
balastracas, reunia a gurizada da casa, fazia — pi! pi! pi! pi! — como pra
galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava,
catando as pratas no terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses
laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho
que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um
pouco é que gritava, num — caim! caim! caim! — de desespero.
Outras vezes dava-me para armar uma jantarola, e sobre o
fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta
da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e
garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!...
Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas
do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán...
Era um pagodista!
Aqui há poucos anos — coitado! — pousei no arranchamento
dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito
tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem
parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma
mocinha — pro caso, uma moça —, que era o — santo-antoninho-onde-te-porei! —
daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa;
tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da
vila.
E noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas
vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.
O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os
aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar
o tal enxoval da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em
casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na
matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro.
Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde
em antes da tomada das Missões.
Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais
por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava
a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de
eguariços, abanava o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e
largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com
gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se
pagavam desquitando-se do mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em
Santa Tecla, do Haedo... O mais, era várzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar
sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas
desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas,
as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o
gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes
pagos!
Quem governava aqui o continente era um chefe que se
chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos
sesmeiros...
Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si
mesmas, se explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só
por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...
Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralho de
jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim
senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor
mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os
lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos
reinóis...
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar
com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra
luxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem!... Com a gauchada!...
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao
outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de
jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios... e
ninguém pagava dízimos dessas cousas.
Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas
e tudo, numa explosão da pólvora; doutras uma partida de milicianos saía de
atravessado e tomava conta de tudo, a couce d’arma: isto foi ensinando a
escaramuçar com os golas-de-couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos:
recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde,
levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Baía, e algum
porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores
sempre se entendiam...
Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos;
depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e
gringos emigrados.
A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era
mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de
cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser
campeiro e destorcido.
Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às
vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos,
aporrear algum subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só
levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!...
Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro,
que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis!...
Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!...
Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de
cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por
boca!
Apareceram também os mascates de campanha, com baús
encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios,
desovar aqui...
Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro
e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...
Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e
está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje.
O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço.
Até a hora da morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango
Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos,
os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o
amargo e copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa
de música na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao
peso dos pratos enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do
marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.
Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na
volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho
duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por
falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das
suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma
algazarra e ela — tão boazinha! — veio à porta do quarto, bem penteada, ainda
num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar
que estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas
grandes, que rolavam devagar dos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber porquê... sem saber
porquê, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
— Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no
quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber porquê... pois o
pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de
noiva...
Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas
num silêncio, tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos
os olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo
entregue de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos
entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enjeitado,
que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
— A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E
mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um
pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram
de bala.... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango
Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu
branco, as flores de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de
vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado,
num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim
esmagadas a casco de bagual!...
Então rompeu o choro na casa toda.
(Contos Gauchescos)
(Ilustração: Alberto Scherer)
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