terça-feira, 20 de outubro de 2020

NUM BAR EM AMSTERDAM, de Albert Camus

 


Meu senhor, posso oferecer-lhe meus préstimos, sem correr o risco de ser inoportuno? Receio que não se consiga fazer entender pelo amável gorila que preside os destinos deste estabelecimento. Na verdade, ele só fala holandês. A não ser que me autorize a defender sua causa, ele não adivinhará que está pedindo genebra. Olhe, ouso acreditar que me tenha compreendido: este aceno deve significar que ele se rende aos meus argumentos. De fato, lá vai ele, apressa-se com uma sábia lentidão. O senhor está com sorte — ele nem resmungou. Quando se recusa a servir alguém, basta-lhe um grunhido: ninguém insiste. Ser senhor do próprio estado de espírito é privilégio dos grandes animais, Mas eu me retiro, meu caro senhor, feliz por lhe ter prestado um serviço. Sou-lhe muito grato e aceitaria, com todo prazer, se estivesse certo de não bancar o intrometido. É muita bondade sua. Então, vou colocar meu copo junto ao seu. 

Tem toda razão, o mutismo dele é ensurdecedor. É o silêncio das florestas primitivas, tão pesado que sufoca. Às vezes, eu me surpreendo com o obstinado desdém que o nosso taciturno amigo demonstra pelas línguas civilizadas. Seu trabalho é atender a marinheiros de todas as nacionalidades neste bar de Amsterdã, a que deu o nome, ninguém sabe bem o motivo, de Mexico-City. Não acha, meu caro senhor, que esses deveres acabam levando sua ignorância a se tornar incômoda? Imagine o homem de Cro-Magnon hospedado na Torre de Babel! No mínimo, sofreria uma sensação de desterro. Mas não, este não sente o exílio, segue seu caminho, nada o atrapalha. Uma das raras frases que ouvi de sua boca proclamava que era "pegar ou largar". Pegar ou largar o quê? Sem dúvida, ele próprio, nosso amigo. Vou fazer-lhe uma confidência: sinto-me atraído por essas criaturas graníticas. Quando pensamos muito sobre o homem, por trabalho ou vocação, às vezes sentimos nostalgia dos primatas. Estes não tinham segundas intenções. 

Nosso anfitrião, na realidade, tem algumas ideias, embora as alimente de modo obscuro. 

Por não compreender o que se diz em sua presença, assumiu um caráter desconfiado. Daí esse ar de sombria gravidade, como se suspeitasse, no mínimo, que há algo de errado entre os homens. 

Esse estado de espírito torna mais difíceis as discussões que não dizem respeito a seu trabalho. 

Veja, por exemplo, acima de sua cabeça, na parede do fundo, aquele retângulo vazio que marca o lugar de um quadro retirado. Com efeito, lá havia um quadro particularmente interessante, uma verdadeira obra-prima. Pois bem, eu estava presente quando o mestre-de-cerimônias o recebeu e quando ele o cedeu. Nas duas ocasiões, teve a mesma desconfiança, depois de passar algumas semanas refletindo. Quanto a isso, é preciso reconhecer — a sociedade arranhou-lhe um pouco a franca simplicidade de temperamento. 

Note bem que não o estou julgando. Acho que sua desconfiança tem fundamento e dela compartilharia de bom grado se, como o senhor está vendo, meu temperamento comunicativo não o impedisse. É, mas pobre de mim, sou muito loquaz — e me relaciono com facilidade. 

Embora eu saiba manter as distâncias convenientes, todas as ocasiões me são propícias. Quando eu vivia na França, não podia encontrar um homem espirituoso sem que logo fizesse amizade. 

Ah, vejo que implica com esse imperfeito do subjuntivo. Confesso minha fraqueza por esse tempo verbal e pelo belo linguajar em geral. Mas pode acreditar — é uma fraqueza pela qual me recrimino. Bem sei que o gosto por finas roupas brancas não pressupõe obrigatoriamente que se tenham os pés sujos. Ainda assim. O estilo, como a popeline, dissimula muitas vezes o eczema. 

Consolo-me dizendo a mim mesmo que, afinal, aqueles que falam de maneira ininteligível também não são puros. Bem, mas voltemos à nossa genebra. 

Vai ficar muito tempo em Amsterdã? Bela cidade, não? Fascinante, concorda? Eis um adjetivo que não ouço há muito tempo. Exatamente desde que saí de Paris, já faz muitos anos. 

Mas o coração tem memória e eu nada esqueci de nossa bela capital, nem dos seus cais. Paris é uma verdadeira ilusão de ótica, um magnífico cenário habitado por quatro milhões de silhuetas. 

Ou quase cinco milhões, segundo o último recenseamento? Bem, eles devem ter feito filhos. Não me surpreenderia. Sempre me pareceu que nossos concidadãos tinham duas paixões desenfreadas: as ideias e a fornicação. A torto e a direito, por assim dizer. Aliás, tentemos não condená-los: não são os únicos, isso ocorre em toda a Europa. Às vezes, imagino o que dirão de nós os historiadores do futuro. Duas ideias lhes bastarão para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais. Depois dessa forte definição, o assunto ficará, se assim posso me expressar, esgotado. 

Os holandeses — Oh, não, estes são muito menos modernos! Têm todo o tempo — olhe só para eles. Que fazem? Pois bem, esses senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. Aliás, tanto os machos quanto as fêmeas são criaturas extremamente burguesas, que aqui vêm, como de costume, por mitomania ou burrice. Em resumo: por excesso ou falta de imaginação. De vez em quando, estes senhores brincam de faca ou de revólver, mas não acredite que se empenhem muito. O papel o exige — nada mais – e eles morrem de medo ao disparar os últimos cartuchos. 

Dito isto, acho que são mais morais do que os outros, os que matam em família, pelo desgaste. 

Nunca observou, caro senhor, que nossa sociedade se organizou para este tipo de liquidação? 

Naturalmente, já deve ter ouvido falar dos minúsculos peixes dos rios brasileiros que se atiram aos milhares sobre o nadador imprudente, e limpam-no, em alguns instantes, com pequenas mordidas rápidas, deixando apenas um esqueleto imaculado. Pois bem, é esta a organização deles. 

"Quer ter uma vida limpa? Como todo mundo?" É claro que a resposta é sim. Como dizer não? 

"Está bem. Pois vamos limpá-lo. Pegue aí um emprego, uma família, férias organizadas." E os pequenos dentes cravam-se na carne até os ossos. Mas estou sendo injusto. Não se deve dizer que a organização é deles. Ela é nossa. Afinal de contas, é o caso de saber quem vai limpar o outro. 

Finalmente, trazem nossa genebra. À sua prosperidade. Sim, o gorila abriu a boca para me chamar de doutor. Nesta terra, todo mundo é doutor ou professor. Gostam de mostrar-se respeitosos, por bondade e por modéstia. Entre eles, pelo menos, a maldade não é uma instituição nacional. Além disso, não sou médico. Se quer mesmo saber, eu era advogado antes de vir para cá. Agora, sou juiz-penitente. 

Mas permita que me apresente: Jean-Baptiste Clamence, seu criado. É um prazer conhecê-lo. Sem dúvida, deve ser um homem de negócios, não é? Mais ou menos? Excelente resposta! E também judiciosa: estamos apenas mais ou menos em todas as coisas. Vejamos, deixe-me bancar o detetive. Tem mais ou menos minha idade, o olhar esclarecido dos quarentões que já fizeram de tudo um pouco. Está mais ou menos bem vestido, quer dizer, como as pessoas se trajam em nosso país, e tem as mãos finas. Portanto, mais ou menos um burguês! Mas um burguês requintado! Implicar com os imperfeitos do subjuntivo, na realidade, demonstra duplamente sua cultura: em primeiro lugar, porque os reconhece, e porque, a seguir, eles o irritam. Enfim, eu o divirto, o que, sem vaidade de minha parte, pressupõe no senhor uma certa abertura de espírito. O senhor é, portanto, mais ou menos... Mas que importa? As profissões me interessam menos do que as seitas. Permita-me que lhe faça duas perguntas, e só me responda se não as julgar indiscretas. O senhor possui bens? Alguns? Bom. Repartiu-os com os pobres? Não. 

É, portanto, o que chamo um saduceu. Se não tem familiaridade com as Escrituras, reconheço que não lhe adiantará muito. Adianta? Então conhece as Escrituras? Decididamente, o senhor me interessa. 

Quanto a mim ... Bem, julgue por si mesmo. Pela estatura, pelos ombros e por este rosto que tantas vezes me disseram ser feroz, eu teria mais o aspecto de um jogador de rúgbi que outra coisa, não é? Mas, a julgar pela conversa, é preciso conceder-me um pouco de refinamento. O camelo que forneceu a pele do meu sobretudo sofria, sem dúvida, de sarna; em compensação, tenho as unhas tratadas. Eu também sou esclarecido e, no entanto, estou me abrindo com o senhor sem precauções, baseado unicamente em sua aparência. Enfim, apesar de minhas boas maneiras e de meu belo linguajar, sou um frequentador assíduo dos bares de marinheiros do Zeedijk. Mas chega, não procure mais. Meu trabalho é duplo — eis tudo — como a criatura. Já lhe disse, sou juiz-penitente. A única coisa simples no meu caso é que nada tenho. Sim, fui rico; não, nada reparti com os outros. O que prova isso? Que eu também era um saduceu ... Oh! Está ouvindo as sereias do porto? Esta noite vai haver neblina sobre o Zuyderzee. 

Já vai embora? Desculpe-me se o atrasei. Se me permite, não pagará nada. Está em minha casa no Mexico-City e tive imenso prazer em recebê-lo. Amanhã, certamente estarei aqui, como nas outras noites, e aceitarei, de bom grado, seu convite. Seu caminho... Bem... Mas, se não vê nenhum inconveniente, seria mais simples acompanhá-lo até o porto. De lá, contornando o bairro judeu, encontrará as belas avenidas, onde desfilam os bondes carregados de flores e de números tonitruantes. Seu hotel certamente fica em uma dessas avenidas, no Damrak. Tenha a bondade, primeiro o senhor. Quando a mim, moro no bairro judeu, ou no que era assim chamado até o momento em que nossos irmãos hitlerianos abriram espaço. Que limpeza! Setenta e cinco mil judeus deportados ou assassinados - é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem caráter, é preciso mesmo valer-se de um método. 

Nesse caso, ele fez milagres, sem dúvida alguma, e eu moro no local em que foi cometido um dos maiores crimes da história. Talvez seja isso que me ajude a compreender o gorila e sua desconfiança. Desse modo, posso lutar contra essa tendência de temperamento que me inclina de modo irresistível à simpatia. Quando vejo uma cara nova, algo dentro de mim faz soar o alarme. 

"Devagar. Perigo!" Mesmo quando a simpatia é intensa, tenho cautela. 

Sabe que em minha pequena aldeia, em uma ação de represália, um oficial alemão pediu delicadamente a uma velhinha para fazer a gentileza de escolher entre os seus dois filhos o que seria fuzilado? Escolher, já imaginou? Aquele? Não, este aqui. E vê-lo partir. Não insistamos nisso, mas creia-me, caro senhor, todas as surpresas são possíveis. Conheci um coração puro que recusava a desconfiança. Era pacifista, libertário e amava com um único amor abrangente toda a humanidade e os animais. Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as últimas guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na entrada de sua casa: 

"De onde quer que você venha, entre e seja bem-vindo." Quem, segundo o senhor, respondeu a este belo convite? Os milicianos, que entraram como se a casa fosse deles e o estriparam. 



(A queda; tradução de Valerie Romjanek) 



(Ilustração: Collin van der Sluijs - Pray For Nothing – 2016)


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