quinta-feira, 23 de abril de 2020
O SEIO NU, de Italo Calvino
O senhor Palomar caminha ao longo da praia solitária. Encontra raros banhistas.
Uma jovem está estendida na areia tomando banho de sol com os seios à mostra. Palomar, homem discreto, volve o olhar para o horizonte marinho. Sabe que, em tais circunstâncias, a aproximação de um desconhecido leva não raro as mulheres a se cobrirem depressa, e isso não lhe parece bom: porque é desagradável para a banhista que tomava seu sol tranquila; porque o homem que passa se sente um elemento perturbador; porque o tabu da nudez fica implicitamente confirmado; e porque as convenções respeitadas pela metade propagam insegurança e incoerência no comportamento em vez de liberdade e franqueza.
Por isso é que ele, mal vê esboçar-se ao longe o perfil brônzeo rosado de um torso feminino nu, apressa-se em assumir com a cabeça uma postura tal que a trajetória de seu olhar permaneça suspensa no vazio e garanta seu respeito civil pela fronteira invisível que circunda as pessoas.
“Contudo”, pensa, seguindo adiante e, mal o horizonte se desobstrui, readquirindo o livre movimento do bulbo ocular, “eu, assim procedendo, ostento uma recusa em ver, ou seja, também acabo por reforçar a convenção que torna ilícita a vista de um seio, ou melhor, instituo uma espécie de sutiã mental suspenso entre os meus olhos e aquele seio que, do deslumbramento surgido dos confins de meu campo visual, pareceu-me jovem e agradável à vista. Em suma, o meu não olhar pressupõe que eu esteja pensando naquela nudez, que me preocupe com ela, e isto é, no fundo, ainda uma atitude indiscreta e retrógrada.”
Voltando de seu passeio, Palomar passa de novo em frente à banhista, e desta vez tem o olhar fixo diante de si, de modo que este aflore com uniformidade equânime a espuma das ondas que se retraem, os cascos dos barcos puxados para o seco, o lençol de espuma estendido sobre a areia, a lua transbordante de pele mais clara com o halo moreno do mamilo e o perfil da costa no embaciamento da distância, acinzentada contra o céu.
“Muito bem”, reflete, satisfeito consigo mesmo, prosseguindo o caminho, “consegui fazer com que o seio fosse absorvido completamente na paisagem, e também que meu olhar não pesasse mais que o olhar de uma gaivota ou de um peixe.”
“Mas será realmente justo proceder assim?”, reflete ainda, “ou não passa de um achatamento da pessoa humana ao nível das coisas considerá-la um objeto, e o que é pior, considerar objeto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei talvez perpetuando o velho hábito da supremacia masculina, endurecida com o passar dos anos numa insolência consuetudinária?”
Volta e torna a voltar sobre seus passos. Ora, ao fazer com que seu olhar deslize sobre a praia com objetividade imparcial, procede de maneira que, mal o seio da moça penetre em seu campo de vista, perceba-se uma descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. O olhar avança até quase aflorar a pele estendida, retrai-se, como que avaliando com um leve estremecimento a consistência diversa da visão e o valor especial que essa adquire, e por um momento permanece a meia altura, descrevendo uma curva que acompanha o relevo do seio a uma certa distância, elusivamente mas também protetoramente, para depois retomar seu curso como se nada houvesse acontecido.
“Creio que assim minha posição se manifestará bem clara”, pensa Palomar, “sem mal-entendidos possíveis. Mas esse sobrevoo do olhar não poderia afinal de contas ser compreendido como uma atitude de superioridade, uma supervalorização daquilo que um seio é e significa, um modo de mantê-lo de certa maneira à parte, à margem ou entre parêntesis? Eis que então volto a relegar o seio à penumbra em que o mantiveram durante séculos a pudicícia sexomaníaca e a concupiscência como pecado...”
Essa interpretação vai contra as melhores intenções de Palomar, que embora pertencendo a uma geração madura, para a qual a nudez do peito feminino se associava à ideia de uma intimidade amorosa, aceita de maneira favorável essa mudança nos costumes, seja pelo que isso representa como reflexo de uma mentalidade mais aberta na sociedade, seja porque tal vista lhe resulte particularmente agradável. É esse encorajamento desinteressado que gostaria de exprimir em seu olhar.
Faz meia-volta. Em passos decisivos avança mais uma vez em direção à moça estendida ao sol. Agora o seu olhar, lambendo voluvelmente a paisagem, deter-se-á no seio com especial cuidado, mas apressando-se em envolvê-lo num impulso de benevolência e gratidão por tudo, pelo sol e o céu, pelos pinheiros recurvos e a duna e a areia e os escolhos e as nuvens e as algas, pelo cosmo que gira em torno daquelas cúspides aureoladas.
Isso deveria bastar para tranquilizar devidamente a banhista solitária e desobstruir o campo das ilações desviadoras. Porém, mal ele volta a aproximar-se, eis que a moça se levanta de um salto, cobre-se, e esbaforida afasta-se com um aborrecido sacudir de ombros como se fugisse das insistências molestas de um sátiro.
“O peso morto de uma tradição de maus costumes impede-a de apreciar em seu justo mérito as intenções mais esclarecidas”, conclui amargamente Palomar.
(Palomar; tradução de Ivo Barroso)
(Ilustração: Javier Arizabalo García)
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