domingo, 26 de abril de 2020

TOPO, de Ruy Proença





subo até o ponto

mais alto do vale

onde a grama e o capim

sabem a ouro

porque o sol oblíquo

deita sobre eles

um lençol de luz



como se é grande

quando se sobe ao ponto

mais alto do vale!



as coisas à vista

os maiores problemas

viram miniaturas



tenho por companhia

um cachorro

um caderno

uma caneta tinteiro

uma câmera fotográfica



o cachorro é dócil

e selvagem



escava o chão

com as patas traseiras

come ervas brutas

que depois expele

em sucessivas golfadas



por que sofrer assim?



na metrópole

alguém me ama

pensa em mim

enquanto penso nela

e escrevo

sem parar



ano passado

um incêndio

devastou o verde

dessa paisagem



mas a natureza

que há na terra

é teimosa

sabe se reinventar



nuvens brancas

por trás de árvores secas chamuscadas

navegam

tangidas pelo vento



estou sentado

sobre um resto

de banco de madeira

que a intempérie e o fogo

destruíram



trago a ruína no estômago

como o cachorro e suas ervas



estou sentado

sobre um banco de areia

de quarenta metros de profundidade

outrora praia de mar

que a força tectônica

ergueu comigo

ao ponto mais alto do vale



além de meus pertences

trago um chapéu de palha

sobre a cabeça

um amor no imo

e um silêncio de brisa

que me atravessa

como uma canção



o cachorro descansa em minha sombra



cachorro sombra sol silêncio abelhas

minha alma pastando




(Ilustração: Cândido Portinari - Brodwski 1934)



Nenhum comentário:

Postar um comentário