quarta-feira, 29 de abril de 2020

OS OCIOSOS, de Bustos Domecq (Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares)



A era atômica, a cortina que cai sobre o colonialismo, a luta de interesses encontrados, a postulação comunista, a alta do custo de vida e a retratação dos meios de pagamento, o chamado do papa à concórdia, o progressivo debilitamento do nosso signo monetário, a prática do trabalho sem vontade, a proliferação de supermercados, a extensão de cheques sem fundos, a conquista do espaço, despovoamento do agro e o auge correlativo das favelas compõem todo um panorama inquietante que dá o que pensar. Diagnosticar os males é uma coisa; prescrever sua terapêutica é outra. Sem aspirar ao título de profetas, atrevemo-nos, no entanto, a insinuar que a importação de Ociosos no país, com vistas à sua fabricação, contribuirá não pouco para diminuir, à maneira de sedativo, o nervosismo hoje tão generalizado. O reino da máquina é um fenômeno que já ninguém disputa; o Ocioso comporta um passo a mais de tão inelutável processo.

Qual foi o primeiro telégrafo, qual o primeiro trator, qual a primeira Singer são perguntas que põem o intelectual em apuros; o problema não se coloca com relação aos Ociosos. Não há no orbe um iconoclasta que negue que o primeiro de todos obrou em Mulhouse e que seu incontestável progenitor foi o engenheiro Walter Eisengardt (1914-1941). Duas personalidades lutavam nesse valioso teutão: o incorrigível sonhador que publicou as duas monografias ponderáveis, hoje esquecidas, em torno das figuras de Molinos e do pensador de raça amarela Lao-tsé, e o sólido metódico de realização tenaz e de cérebro prático que, depois de arquitetar uma porção de máquinas claramente industriais, deu à luz, em 3 de junho de 1939, ao primeiro Ocioso de que se tem notícia. Falamos do modelo que se conserva no Museu de Mulhouse: apenas um metro e vinte e cinco de longitude, setenta centímetros de altura e quarenta de largura, mas nele quase todos os detalhes, desde os recipientes de metal até os condutos.

O segundo é de uso em toda localidade fronteiriça, uma das avós maternas do inventor era de cepa gaulesa e o mais notável da vizinhança a conhecia pelo nome de Germaine Baculard. O folheto no qual nos baseamos para este trabalho de fôlego intui que essa elegância, que é a marca da obra de Eisengardt, tem fonte de origem naquela irrigação de sangue cartesiano. Não regateamos nosso aplauso a esta amável hipótese que, além do mais, é adotada por Jean-Christophe Baculard, continuador e divulgador do mestre. Eisengardt faleceu mediante um acidente de automóvel da marca Bugatti; não lhe foi dado ver os Ociosos que hoje triunfam em usinas e escritórios. Prega que os contemple do céu, diminuídos pela distância e, por isso, mais de acordo com o protótipo que ele mesmo rematara!

Aqui vai agora um esboço do Ocioso, para aqueles leitores que ainda não tiveram o escrúpulo de ir examiná-lo em San Justo, na fábrica de Pistões Ubalde. O monumental artefato cobre a largura do terraço que centra o ponto da usina. Assim, a olho, lembra um linotipo desmesurado. É duas vezes mais alto que o capataz; seu peso se computa em várias toneladas de areia; a cor é de ferro pintado de preto; o material, de ferro.

Uma passarela em escadaria permite que o visitante o escrute e toque. Sentirá lá dentro como um leve pulsar e, se aplicar o ouvido, detectará um longínquo sussurro. De fato, há em seu interior um sistema de condutos pelos quais corre água na escuridão e uma que outra pedra. Ninguém pretenderá, no entanto, que são as qualidades físicas do Ocioso as que redundam na massa humana que o rodeia; é a consciência de que em suas entranhas palpita algo silencioso e secreto, algo que brinca e dorme.

A meta perseguida pelas românticas vigílias de Eisengardt foi plenamente alcançada; onde quer que haja um Ocioso, a máquina descansa e o homem, reanimado, trabalha.



(Crônicas de Bustos Domecq Novos Contos de Bustos Domecq; Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro)



(Ilustração: Manabu Mabe - sem título)



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