terça-feira, 4 de março de 2014
A SOMBRA DAS NUVENS NO MAR, de Inês Pedrosa
Só nos livros o amor racha corações em
relâmpago.
Dinamene tomava vagares e quando atingia o
sobressalto do sossego do acordo consigo mesma, o seu corpo mudava-se. De
negro, fazia-se branco, de branco doirado, e depois moreno espesso. Talvez fora
da ilha o tempo voltasse e Dinamene pudesse conquistar a efémera angustia de
uma identidade de mulher. Tentara barcos e pássaros, as ondas e depois o fundo
do mar, mas as águas e os ares devolviam-na repetidamente. Queria morrer e
flutuava. Queria amar-se e mudava. Acordava sem saber de si, o sangue em forma
de pedra, as pernas de âmbar, os cabelos de cedro velho e o rosto de mogno com
uma mobília de palácio.
A mágoa das matérias – pedra ou barro –
chorava em círculos pesados dentro dela. Se ao menos tivesse memória. Olhava e
tudo o que via era beleza: encostas verdes carregadas de flores, uma cidade cor
de rosa encostada a navios grandes que à noite iluminavam o mar a toda a volta.
Mas nem estas coisas simples Dinamene chegava a nomear. Quando se aproximava
das palavras o seu corpo transfigurava-se e era como se a vida recomeçasse de
um princípio que ela já conhecia mas nunca chegava a aprender. De qualquer
maneira as pessoas ficavam a contemplá-la. Diziam: "Coitadinha! Tão
bonita!" e ela sentia um fio de água (ou de seiva, ou lama, ou ouro,
dependendo do dia) descer-lhe pelo rosto. Sonhava que era uma rapariga como as
outras, com uma só pele para envelhecer devagarinho e colecionar fotografias e
remorsos. Havia no sonho uma voz fatalista: "Serás sempre uma árvore
apaixonada pelos barcos, é essa a tua maldição", e quando ela queria
perguntar porquê o sonho acabava e o espelho mostrava-a outra, cada vez mas
condenada à eternidade, que é o sítio de onde todas as recordações
desapareceram. Olhava para as barrigas redondas das mulheres cheias, efémeras,
íntimas e distantes como brinquedos, olhava-as com tal ausência que as comovia.
As mulheres pegavam na cabeça loura e negra de Dinamene e encostavam-na à pele
estoirada dos seus ventres. O som monótono da mortalidade deixava-a com
saudades de ser feliz.
Dinamene nascera um dia, experimentara o
terrível prazer da precariedade. Às vezes, os olhos dos homens traziam-lhe um
violento odor a lenha e leite, uma coisa que escaldava como sangue a jorros de
pulsos abertos. Tentara rasgar a pele com uma tesoura funda, e de imediato ela
se lhe mudara em granito escuro, brilhante. Meteu-se-lhe então na cabeça que a
ilha havia de ter um buraco, um lugar por onde a queda pudesse ser definitiva.
Há muitos anos, na escola, Dinamene aprendera a fugir de poços, grutas e covas
porque no centro da terra ficava o inferno, mas agora ela não tinha qualquer
ideia do que fosse uma escola. Correu a ilha toda muitas e muitas vezes, e
quanto mais corria mais o seu corpo se afastava da terra. Pisava orquídeas e
elas voltavam-se para o sol, como se em vez de pisadas tivessem sido
acariciadas pela brisa do mar. Correu tanto que acabou por provocar os ventos e
congregar as nuvens que andavam lá longe pelos continentes do mundo. A ilha
pôs-se a baloiçar como uma alma confusa e entornou Dinamene para dentro de uma
fortaleza de pedra roubada ao tempo dos piratas. A primeira sala parecia uma
caixa de fósforos gigante, onde os fósforos desenhavam um labirinto de
andaimes. Ao fundo da sala havia uma enorme mesa de madeira, daquelas de
desenhar cidades ou meditar sobre o esplendor da verdade. Dinamene acabou por
reparar que sempre que suspirava um dos fósforos caía e aparecia um desenho na
mesa do fundo, que podia ser de frades ou arquitectos ou poetas. Queria
tocar-lhes, mas os desenhos esfumavam-se, desfaziam-se em giz nas mãos dela. E
o giz marcou o caminho da segunda sala, que era depois de uma ponte estreita, e
quando ela entrou na segunda sala começou a nevar lá fora. Dinamene olhou para
as mãos porque de repente o seu corpo fazia um barulho de livro desfolhado, e a
pele desatou a encarquilhar-se muito depressa, até ficar cor de pergaminho,
como os velhos ou os recém-nascidos. Não havia ali espelho que confirmasse a
situação de Dinamene. De qualquer modo, Dinamene era imune aos espelhos. Só a
água lhe reflectia os contornos, em dias de controlada luz. Deitou-se no chão,
ao lado de uma espiral de flores que ali havia, e deixou-se cobrir pelas
pétalas brancas e vermelhas, que lhe imitavam o frio da neve e o sabor metálico
do sangue.
E então Dinamene lembrou-se. As imagens
acudiam-lhe em tropel, recortadas em riso, assimétricas, numas cores ferozes de
vida. Tinha um enorme cravo vermelho no cabelo em forma de estrela do mar e as
suas mãos pequenas, pacientes, construíam uma cidade de fósforos. Crescera em
volta daquela cidade. Quando acabou de crescer verificou que a sua cidade
estava rodeada por uma verdadeira muralha de papel. Pegou na primeira folha e
leu o que estava escrito. Amor, amor, amor, ah, minha Dinamene, eternamente.
Soltou uma gargalhada e caiu do céu uma luz que se ateou aos fósforos e reduziu
a cinzas a sua infância inteira. Dinamene decidiu esquecer. Coleccionou
fotografias até inventar uma família que lhe ficasse bem. Às vezes deixava-se
arruinar, às vezes bordava panos para os barcos que partiam. Quando se cansou
de imaginar começou a copiar gestos e sentimentos dos romances. Não corria o
perigo da seriedade, porque tinha um guarda-roupa faustoso dentro da cabeça.
Nada era para sempre, nada merecia o empenhamento de uma existência, tudo fogo
que arde. Era a única mulher que gostava de envelhecer. Entediava-a a ideia de
acordar todos os dias da vida com a mesma pele lisa dos objectos sem passado.
Amava as imperceptíveis corrosões do tempo, talvez por isso parecia cada dia
mais nova. Ganhou fama de bondosa por alheamento, tão determinada se
apresentava sempre a estudar a sombra das nuvens no mar. Intrigava-a a
persistência que as pessoas punham nos actos, para o bem como para o mal. Por
isso mesmo, desencadeava paixões furiosas. Troçava da persistência das guerras
e dos sentimentos, vivia o poder absoluto da indiferença material. Nunca saíra
da ilha, que é o mesmo que dizer que jamais lhe pertencera, porque tinha todos
os sentidos pousados nas substâncias passageiras. Divertia-a o jogo das
intensidades, donde começou a murmurar-se que mentia. Numa hora beijava, na
seguinte enxotava e ria. Até que os limites humanos do desengano coincidiram
com os limites físicos da ilha, e a colecção de apaixonados transbordou numa
multidão de revoltados.
Dinamene foi convidada para uma festa no
alto do monte, num palácio onde morrera um rei estrangeiro. Quando ela entrou,
com um vestido da cor do Tempo, todos – homens e mulheres – suspiraram de
desejo e pavor. Avançaram para ela com uma garrafa cheia de um líquido dourado
e pediram-lhe que bebesse aquele néctar feito de propósito para ela. Dinamene
bebeu e rejuvenesceu. Parecia que aquela bebida continha a fórmula da
felicidade eterna. De certa forma, era verdade. Naquele jarro estavam as
lágrimas de todas as pessoas que a tinham amado. De madrugada, a pele de
Dinamene desatou a escurecer. Como se o corpo tivesse decidido preencher-lhe
todos os espaços em branco da vida.
Foi assim que Dinamene passou da vida à
arte, de ser humano a parecer literal: a alma encheu-se-lhe de estruturas
precárias, o corpo esvaziou-se-lhe em sucessivas acumulações de cor. Até ao
instante em que, deitada sob pétalas, Dinamene se lembrou de tudo e depois
esqueceu-se e nasceu a chorar.
(Ilustração: Auguste Leroux - nu)
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