sexta-feira, 31 de julho de 2020

A DEFESA DO POETA, de Natália Correia




Senhores juízes sou um poeta

um multipétalo uivo um defeito

e ando com uma camisa de vento

ao contrário do esqueleto.



Sou um vestíbulo do impossível um lápis

de armazenado espanto e por fim

com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim.



Sou em código o azul de todos

(curtido couro de cicatrizes)

uma avaria cantante

na maquineta dos felizes.



Senhores banqueiros sois a cidade

o vosso enfarte serei

não há cidade sem o parque

do sono que vos roubei.



Senhores professores que pusestes

a prémio minha rara edição

de raptar-me em crianças que salvo

do incêndio da vossa lição.



Senhores tiranos que do baralho

de em pó volverdes sois os reis

dou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não vereis.



Senhores heróis até aos dentes

puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos

umas estrofes mais além.



Senhores três quatro cinco e sete

que medo vos pôs em ordem?

que pavor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem?



Senhores juízes que não molhais

a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro

sem que ele cante minha defesa.



Sou um instantâneo das coisas

apanhadas em delito de paixão

a raiz quadrada da flor

que espalmais em apertos de mão.



Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever.

Ó subalimentados do sonho!



A poesia é para comer.



(Poesia completa, 1999)



(Ilustração: Gerda Wegener 1925 - Les Delassements d'Eros)

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