sexta-feira, 10 de julho de 2020

SERÁ QUE JOHN CONHECIA TANTA GENTE?, de Maggie O’Farrell








Ainda não consigo acreditar que você foi embora. Antes, eu acordava e ficava pensando por que sentia essa dor no peito e por que meu travesseiro estava molhado. 

Esquecia que era um absurdo para mim viver sem você. Absurdo. 

Mas você morreu. E sem nenhuma razão. 

Uns dias depois da sua morte, os jornais publicaram uma foto do homem que colocou a bomba que acabou com a sua vida. Ele também morreu, era um rapaz jovem, mais jovem que você. Minha família tentou esconder o jornal de mim naquela época, mas eu vi e não senti raiva dele. Tive vontade de falar com o pai e a mãe dele e perguntar como se sentiam. Se estavam se sentindo como digo a mim mesma que eles estão se sentindo. 

Alguém pôs Annie no meu colo. Fico surpresa. Acho que nunca vi ninguém fazer isso. Deve ter sido Kirsty. Viro minha cabeça para a direita. Kirsty também está sentada no banco de trás do carro, olhando pela janela, e nosso pai está entre mim e ela. Minha mãe dirige agarrada ao volante, as mãos cheias de anéis. Ela detesta dirigir em Londres. Beth está ao seu lado. Eu me pergunto vagamente onde estará Neil. Tenho certeza de que o vi antes com o bebê. Jamie. Sinto calor. Estou usando umas roupas engraçadas. Tomei um banho hoje de manhã quando voltei para o quarto, e vi minha mãe junto da janela tirando as etiquetas de uma saia e um casaco novos, murmurando com raiva: 

— Se você vai se encontrar com aqueles cretinos, então vou garantir que você cause uma boa impressão. 

A saia é de lã preta, e a felpa da lã pinica minha pele; as mangas do casaco são curtas demais e a saia tem um comprimento estranho. É justa na altura dos joelhos e eu tenho de dar passos miúdos quando ando. Estou me sentindo esquisita com essas roupas. 

Inclino-me para a frente, minha cabeça encostando na de Annie, e giro a maçaneta da janela algumas vezes. O alto da janela desce, e um jato de ar gelado entra pela fresta. Annie fica rígida nos meus braços, os olhos azuis amendoados muito abertos. Levanta um braço e enfia os dedinhos flexíveis na fresta, mas tira-os imediatamente e põe a mão no peito. Eu dobro meus dedos em volta dos dela. 

— Estava muito frio? — pergunto. 

De súbito, todos no carro viram-se para mim. 

— O que você disse? 

— O que foi? 

— Desculpe? 

— Como? 

— Você disse alguma coisa? — falam todos ao mesmo tempo. 

Olho para Annie. Seu cabelo, crescendo como palha no crânio frágil, é louro esbranquiçado como seda crua. Não me lembro quando foi que ouvi minha voz pela última vez. Limpo a garganta para tentar falar mais, porém meus lábios se juntam e eu digo o nome dele dentro da minha cabeça: John. E digo depois: ele está morto. 

Os olhos de Annie viram para um lado e para o outro, olhando para as ruas por onde passamos. De repente ela levanta o braço de novo e tensiona todo o corpo com o esforço. Os nós de seus dedos têm covinhas e ela estica o dedo indicador. 

— Olo! — exclama com cuidado, olhando para mim como que esperando confirmação. 

Faz-se uma pausa. 

— Ela está dizendo cacholo — explica Kirsty. — Diz isso sempre que vê um cachorro. 

Eu olho pela janela. A menos de um metro de nós, um casal está passeando na calçada. O homem deslizou a mão para dentro do bolso de trás do jeans da mulher, mas ela está zangada, de sobrancelha franzida. Vira-se para ele, falando aos solavancos, e a cada gesticulação sua o braço preso no bolso do seu jeans balança como se fosse uma marionete. Trotando ao lado deles, com uma tira de couro vermelha na boca, indiferente às manifestações de raiva, vem um cachorro marrom peludo. 

O carro continua. Estico a cabeça para ver os dois, e antes de virarmos em uma esquina, vejo que continuam discutindo. Pararam de andar, e ele tirou a mão do bolso da mulher. Não vejo mais nada. Annie virou-se e está me olhando atentamente. Ela não me vê com muita frequência. Aperta meu queixo com a ponta do indicador. Uma das minhas lágrimas rola pelo seu dedo, pela sua mão e pela manga do seu suéter. Ela puxa a mão e dá uma espiada na manga do suéter. 

O carro para e todos descem. Eu destranco a porta e fico agarrada a Annie. Tenho de dobrar os joelhos e me debruçar para a frente para não bater com a cabeça na porta do carro. Percebo um movimento súbito entre as pessoas que estão na calçada e ouço um som abafado quando meus pés pisam no chão. Estou rodeada de gente que se acotovela, fazendo perguntas e tirando fotos. 

— Sra. Friedmann, tem algum comentário para fazer sobre a morte de seu marido? 

— É verdade que John estava brigado com a família? 

— Alice, esse bebê é seu? É filha de John Friedmann? 

— Alice, pode olhar para este lado? 

Protejo a cabeça de Annie com a mão. Ela se agarra à gola da minha blusa com tanta força que acho que vou ficar sem ar, e seus gritos penetram nos meus ouvidos. Então alguém — um amigo de John do jornal, que apareceu não sei de onde — manda essa gente embora e me puxa pelo braço. Entramos por uma porta, Beth vem para o meu lado, Annie me larga e meu pai me dá a mão. Fica tudo muito silencioso de repente. 

O caixão é um choque. Ali está ele, digo a mim mesma, seu corpo está debaixo daquela madeira. Acho muito importante examinar tudo em detalhes, passar a mão e sentir a granulosidade e os veios da madeira. Estou perto do caixão, posso ver os grandes pregos de cobre fechando a tampa. Sinto uma sufocação no peito. Ponho-me a pensar que tipo de chave de fenda seria preciso para tirar esses pregos, e chego mais perto, muito perto; minha mão está quase tocando a madeira quando alguém me puxa pela outra mão. Intrigada, olho em volta e vejo que meu pai ainda está me segurando. 

— Por aqui, Alice — diz ele — Vamos nos sentar. 

Mas... 

— Vamos — repete ele gentilmente. 

Estou muito perto agora. Mais dois passos e posso passar a mão no caixão. Ele será macio? Será quente? Vou poder encostar o rosto nele? Olho para meu pai. Não seria difícil me desvencilhar dele e dar esses dois passos. Mais adiante, posso ver minha família sentada na primeira fila, todos me olhando ansiosos. Neil está lá também, com Jamie nos braços. Mais adiante ainda há um bando de rostos, muitos rostos — será que John conhecia tanta gente? — me olhando de lado. De repente penso que entre eles talvez esteja o pai de John. Deixo meu pai me levar e sento entre ele e minha mãe. Talvez me deixem tocar no caixão mais tarde. 

Ouço minha própria respiração, inspirando e expirando, meus pulmões enchendo-se e soltando o ar na atmosfera. Imagino o ar entrando em mim como uma luz enchendo um espaço escuro. Então, sem querer, vejo que estou pensando como seria tentar respirar com o corpo coberto de poeira e dióxido de carbono, ou tentar respirar com toneladas e mais toneladas de concreto e metal por cima. Ele teria morrido logo ou ficado consciente durante horas, lutando para respirar, esperando que alguém o salvasse? A polícia não soube dizer. Sinto de novo aquele pânico subindo pelo meu estômago, olho firme para o homem que está à minha frente e me concentro no que ele está dizendo para não gritar. 

É Sam, um amigo de John dos tempos da universidade, que fala sem parar; quando começa uma frase, estica as mãos e abre os dedos como pétalas; quando termina, junta as mãos de novo. Para dentro e para fora, para dentro e para fora. Fico observando-o, mas não ouço nada porque não quero ouvir, porque nada disso me interessa, nada vai trazer John de volta e nada do que digam irá mudar o fato de que John está deitado naquele caixão e que eu quero ir lá tocar nele. Ouço Annie exclamar alguma coisa e Kirsty falar baixinho para ela se calar — a pobrezinha deve estar aborrecida. Então ouço Sam mencionar meu nome, é como uma agulha passando por um disco arranhado, e tenho medo dessas pessoas quererem que eu vá até lá dizer alguma coisa, pois não sei o que eu poderia dizer, não sei o que há a dizer, só quero passar a mão naquele caixão pelo menos uma vez; eu me armaria de coragem e não choraria nem faria uma cena diante de toda aquela gente, pois é isso que preocupa meus pais, eu sei. Diante do pai dele. 

O pai dele. Começo a me mexer na cadeira. Quero ver o pai dele. Examino todos aqueles rostos um a um. Conheço todas aquelas pessoas. Algumas sorriem e outras meneiam a cabeça. Uma delas acena para mim. Eu não me manifesto — e me sinto mal de ignorá-las —, pois só quero olhar para ele. Só quero ver quem ele é, quero que ele olhe para mim e pense, essa é a Alice. 

Minha mãe puxa-me pela manga e sussurra "Alice", e eu sei que ela quer que eu me vire e me sente direito na cadeira, mas eu não quero. Do outro lado da sala, numa parte mais estreita, vejo um grupo de pessoas que não conheço. É a família de John. Sei que é. Seis ou sete pessoas. Quatro são homens de meia-idade, de sobretudos escuros. Noto que estou procurando alguém que se pareça com John, estou procurando um homem mais velho que se assemelhe a ele, mas tudo em vão. 

Uma colega de trabalho de John lê um poema. Ouço as pessoas soluçarem na sala e meu pai, ao meu lado, pôr a mão na testa. É engraçado, eu costumava brincar com John dizendo que aquela mulher tinha uma queda por ele. Já estou para me virar de novo para olhar a família de John quando ouço um som eletrônico estranho. Umas rodinhas debaixo do caixão giram, e o caixão passa lentamente por uma abertura na parede oculta atrás de uma cortina. 

Ninguém tinha me dito que isso iria acontecer. 

Dou um pulo, mal me aguentando nas pernas, mas imediatamente meus pais me seguram e me fazem sentar de novo. 

— Não! Não, por favor, eu só quero... — digo, tentando me desvencilhar deles. 

Meus pais estão esmagando minhas mãos, e eu vejo com horror o caixão entrar lentamente no buraco e desaparecer. Então solto as mãos para cobrir o rosto. Tapo os olhos durante muito tempo porque não quero ver nada nunca mais. 



(Depois que você foi embora; tradução de Vera Whately) 



(Ilustração: Larry Rivers. The Burial, 1951)



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