quinta-feira, 16 de julho de 2020
TIA PHASIE E O BRUSCO ESTRONDO DOS TRENS, de Émile Zola
Com passadas rápidas, Jacques atravessou o estreito quintal e entrou na casa. No meio do primeiro cômodo, uma ampla cozinha em que se comia e se vivia, tia Phasie, como ele a chamava desde criança, estava só, sentada junto à mesa numa cadeira de palha, as pernas agasalhadas por um xale velho. Era prima do seu pai, da mesma família Lantier.[1] Além disso, era também sua madrinha e o aceitara em casa, quando tinha seis anos e os pais, hoje mortos, se mudaram para Paris. Ele continuou em Plassans, onde mais tarde seguiu cursos da Escola de Artes e Ofícios.[2] Guardou pela tia muita gratidão, dizendo sempre ser a quem devia o caminho feito. Quando se tornou maquinista de primeira classe na Companhia do Oeste, após dois anos na Estrada de Ferro de Orléans, voltou a encontrar a madrinha, casada pela segunda vez com um guarda-cancela chamado Misard, exilada com as duas filhas do primeiro casamento naquele buraco perdido de Croix-de-Maufras. Agora, mesmo tendo apenas quarenta e cinco anos, a bonita tia Phasie de antigamente, tão grande e forte, aparentava sessenta, emagrecida e amarelada, sacudida por contínuos tremores.
Ela deu um grito de alegria.
− É você, Jacques!… Ah, meu menino, que surpresa!
Ele beijou-a no rosto e explicou que acabava de obter dois dias de folga forçada; a Lison, sua locomotiva, havia quebrado uma biela ao chegar naquela manhã a Le Havre. Como o conserto levaria pelo menos vinte e quatro horas, ele só retomaria o serviço à noitinha do dia seguinte, com o expresso das 18h40. Viera então dar um beijo. Ficava para dormir e pegaria o trem de Barentin às sete e vinte e seis. E mantendo as pobres mãos da madrinha entre as suas disse-lhe o quanto a sua última carta o preocupara.
− É verdade, meu menino, as coisas não vão bem, nem um pouco… Foi muito gentil, adivinhando o quanto tinha vontade de vê-lo! Mas sei que é ocupado e não me atrevi a pedir que viesse. O que importa é que está aqui, num momento em que tenho o coração aflito!
Parou para dar uma olhada apreensiva para a janela. Com o dia que terminava, do outro lado da via férrea podia-se ver o marido, Misard, no seu posto de serviço, uma dessas cabanas de tábuas, armadas a cada cinco ou seis quilômetros e ligadas por aparelhos telegráficos, para garantir a boa circulação dos trens. A mulher – agora substituída por Flore − se encarregava da cancela da passagem de nível, e Misard se tornara sinaleiro.[3] Como se o marido a pudesse ouvir, ela baixou a voz, com um tremor.
− Acho que ele me envenena.
Jacques se assustou com a confidência e seus olhos, que se dirigiram também à janela, voltaram a se embaçar com aquela mesma estranha perturbação, o ligeiro fumo pardacento que deslustrava o seu brilho negro, diamantado e dourado.
− Que ideia, tia Phasie! – ele murmurou. – Tem aparência tão dócil e inofensiva.
Um trem indo na direção de Le Havre acabava de passar e Misard saiu de seu posto para fechar a via. Enquanto manejava a alavanca, passando para o vermelho o sinal, Jacques o observou. Um homenzinho magro, cabelos e barba escassos, sem cor, faces escavadas e miseráveis. Junto a isso, silencioso, apagado, sem raivas, de obsequiosa polidez no trato com os chefes. Voltou à cabana de tábuas para registrar no diário o horário da passagem e apertar os dois botões elétricos, um devolvendo a via livre para o posto precedente e o outro anunciando o trem ao posto seguinte.
− Ah, não o conhece! – continuou tia Phasie. – Posso jurar que me faz tomar alguma porcaria… Eu que era tão forte, poderia comer ele inteiro, e é esse pedacinho de homem, esse quase nada que está me comendo pelas beiradas!
Ela febrilmente se exaltava num rancor surdo e medroso, punha para fora o que pesava no coração, contente de finalmente ter quem a ouvisse. Onde é que estava com a cabeça quando se casou com um sonso daqueles, sem um centavo, avaro ainda por cima, cinco anos mais moço, com duas filhas, uma de seis e outra de oito anos? Lá se iam quase dez anos que havia feito a besteira e não passava uma hora sem se arrepender: uma existência de miséria e o exílio naquele lugar gelado do Norte, onde se batiam os dentes, num tédio mortal, sem nunca ter com quem falar, sequer uma vizinha. Misard tinha sido assentador de trilhos e agora ganhava mil e duzentos francos como sinaleiro. Ela, desde o início, tinha cinquenta francos pela cancela de que Flore agora se ocupava. E aí estavam o presente e o futuro, tendo como única esperança apenas a certeza de viver e morrer naquele buraco, a mil léguas dos seres vivos. O que não mencionava eram as consolações que tinha antes de adoecer, quando o marido trabalhava no balastro[4] e ela ficava sozinha com as filhas para guardar a cancela. Pois na época tinha tal reputação, por toda a linha Le Havre−Rouen, que os inspetores da estrada de ferro a visitavam de passagem. Isso havia inclusive gerado rivalidades, com os funcionários da manutenção de um outro serviço redobrando a vigilância, para estar sempre em ronda. O marido não incomodava, obsequioso com todo mundo, passando sem fazer barulho pelas portas, indo e vindo sem nada ver. Mas essas distrações tinham acabado e ali ela estava, por semanas e meses, naquela cadeira, naquela solidão, sentindo o corpo acabando a cada hora.
− Estou dizendo – repetiu em conclusão −, ele é que tomou a iniciativa e vai acabar comigo, por mais pequenininho que seja.
Uma campainha repentina fez com que voltasse a olhar assustada para fora. Era o posto precedente que anunciava ao sinaleiro um trem na direção de Paris, com a agulha do aparelho, que ficava junto à vidraça, se inclinando neste sentido. Ele fez cessar o aviso e saiu para sinalizar o trem com dois toques de buzina. Flore, nesse momento, foi descer a cancela e depois se postou, segurando reta a bandeirinha em sua capa de couro. Ouviu-se o trem, um expresso, oculto por uma curva, se aproximar com crescente rugido. Passou como um raio, sacudindo tudo, ameaçando levar junto a casinha baixa, num vento de tempestade. Flore já voltava a seus legumes, e Misard, depois de fechar a via atrás do trem, foi reabrir a via oposta, descendo a alavanca para desligar o sinal vermelho. De novo a campainha, acompanhada pelo movimento da outra agulha, avisava que o trem que passara cinco minutos antes acabava de atravessar o posto seguinte. Ele entrou, preveniu os dois colegas, registrou a passagem e esperou. Sempre a mesma rotina, cumprida doze horas por dia, vivendo ali, comendo ali, sem ler três linhas de jornal, sem parecer sequer haver um pensamento próprio em sua caixa craniana oblíqua.
Jacques, que antigamente fazia brincadeiras sobre a madrinha e as confusões que ela criava entre os inspetores da via, não pôde deixar de sorrir, comentando:
− Talvez tenha ciúme.
Mas Phasie deu de ombros, como se o marido só lhe causasse pena. Ao mesmo tempo, porém, uma risada irresistível iluminou seus pobres olhos descorados.
− Ai, meu filho! O que está dizendo?… Ele com ciúme!? Nunca ligou para isso, já que não afetava o seu bolso.
Depois, novamente abalada por tremores:
− Não, não se importava. Para ele só o dinheiro conta… Sabe o que o irritou? Eu não quis dar a ele os mil francos de papai, ano passado, quando recebi a herança. Avisou que isso ia me causar desgraça… Foi quando fiquei doente. E desde então o mal não me largou mais. Isso mesmo! Começou logo depois!
O rapaz compreendeu e, impressionado pela morbidez que o sofrimento dava às ideias da tia, tentou dissuadi-la. Mas ela teimava com um movimento da cabeça, como alguém absolutamente convencido do que diz. Ele então acabou dizendo:
− Pois, nesse caso, é simples! Para acabar com isso, dê a ele os mil francos!
Num extraordinário esforço pôs-se de pé, ressuscitada, violenta:
− Meus mil francos? Nunca! Prefiro morrer… Estão escondidos, bem escondidos, fique sabendo! Podem virar a casa de cabeça para baixo, duvido que encontrem… Aliás, ele já a revirou um bocado, o espertinho! Bem que o ouvi, à noite, batendo nas paredes. Vai procurando, vai procurando! Só o prazer de ver essa frustração já basta para que eu aguente… Vamos ver quem desiste primeiro, ele ou eu. Estou atenta, não engulo mais nada em que ele toque. Se mesmo assim eu me for, que seja! Ele, de qualquer forma, não terá meus mil francos! Prefiro deixar tudo para a terra.
Sacudida por novo toque de buzina, ela afundou outra vez na cadeira, exausta. Era Misard, que à porta do seu posto de cantoneiro assinalava agora um trem na direção de Le Havre. Apesar da obstinação em que Phasie se trancava, para não entregar a herança, tinha um medo secreto do marido, um medo crescente, o medo que o colosso sente diante do inseto que o devora. E o trem anunciado, um trem parador saído de Paris às doze e quarenta e cinco, ainda estava longe, se aproximando com um rugido surdo. Ouviu-se quando ele saiu do túnel, resfolegando ainda mais alto ao ar livre. Em seguida passou, no estardalhaço das rodas e aquela massa de vagões, com sua força invencível de tufão.
De olhos erguidos para a janela, Jacques viu o desfile dos quadradinhos de vidro, nos quais se podia distinguir o perfil dos viajantes. Querendo desviar o rumo das ideias sombrias da tia, disse em tom de brincadeira:
− Madrinha, a senhora reclama de nunca ver ninguém nesse buraco… Mas olhe quanta gente!
Ela não entendeu de imediato, surpresa.
− Como assim, gente?… Ah, estou vendo! Gente que passa. Grande coisa! Gente que não conheço, com que não posso conversar.
Ele continuou a rir.
− A mim você conhece bem e me vê sempre passar.
− No seu caso, é verdade, conheço e sei o horário do seu trem. Fico de olho na locomotiva, mas tudo se passa rápido, tão rápido! Ontem fez assim com a mão. Só que não posso responder… Não, realmente, não é uma maneira de se ver o mundo.
No entanto, aquela ideia da multidão que os trens, indo e vindo, diariamente carregavam bem ali, à frente dela, no grande silêncio da solidão, deixou-a pensativa, olhando a estrada de ferro, na noite que caía. Quando ainda estava bem, andando de um lado para outro, e se plantava diante da cancela, com a bandeirinha na mão, não pensava nesse tipo de coisa. Agora devaneios confusos, mal formulados, se embaralhavam na cabeça, desde que passava os dias naquela cadeira, tendo como reflexão somente a luta surda que travava contra o próprio marido. Isso lhe parecia estranho, viver perdida no fundo daquele deserto sem ter uma alma à qual se confiar, enquanto, de dia e de noite, continuamente, desfilavam tantos homens e mulheres no fragor dos trens, sacudindo a casa e se afastando a todo vapor. É claro que a Terra inteira passava por ali, não só franceses, também estrangeiros, pessoas dos lugares mais distantes, já que ninguém mais era capaz de ficar em casa e todos os povos, como agora se dizia, em breve seriam um só. Era isso o progresso: todos irmãos, rodando juntos, para longe, rumo à terra de leite e de mel. Ela tentava contá-los, tirando a média, imaginando tantos por vagão: era uma quantidade enorme, que ultrapassava a sua capacidade. Às vezes achava reconhecer alguns rostos, o de um senhor de barba alourada, provavelmente inglês, que toda semana fazia a viagem a Paris, e o de uma senhora morena, passando regularmente às quartas e sábados. Mas o trovão os levava embora, ela não tinha certeza de tê-los visto, todos os rostos se apagavam e se confundiam, iguais, dissipando-se uns nos outros. A torrente seguia, sem deixar nada de si. E o que a entristecia era que, por baixo daquele fluxo contínuo, sob o desfile de tanto conforto e tanto dinheiro, ninguém naquela multidão tão sôfrega sabia da sua presença ali, em perigo de vida. E isso a tal ponto que, se o marido a eliminasse uma noite, os trens continuariam a passar próximo ao seu cadáver, sem a menor noção do crime ocorrido no interior daquela casa solitária.
Phasie manteve os olhos grudados na janela e tentou resumir uma explicação para o que muito vagamente sentia:
− Ah, é uma bela invenção, não se pode dizer o contrário. Anda-se mais rápido, sabe-se mais… Mas bestas selvagens continuam bestas selvagens; e por mais que inventem mecânicas melhores, ainda assim haverá bestas selvagens lidando com elas.
Mais uma vez Jacques balançou a cabeça, mostrando concordar com a tia. Há alguns segundos ele olhava Flore, que abria a cancela para uma carroça da pedreira, carregada com dois enormes blocos de pedra. Aquela estrada servia apenas às pedreiras de Bécourt, de forma que, à noite, a cancela era acorrentada, sendo muito raro a moça precisar ser acordada. Vendo-a familiarmente conversar com o carroceiro, um homenzinho moreno, ele exclamou:
− Como? Cabuche está doente, para que o primo Louis guie os cavalos? Pobre Cabuche! A senhora o vê sempre, madrinha?
Ela ergueu as mãos sem responder, com um grande suspiro. Tinha sido todo um drama, no outono passado, que em nada tinha ajudado a sua recuperação: a filha Louisette, a caçula, trabalhava como criada na casa da sra. Bonnehon, em Doinville, e fugiu certa noite, apavorada e muito machucada, indo morrer na cabana do seu amigo Cabuche, em plena floresta. Circularam algumas histórias, acusando de violência o presidente Grandmorin, mas ninguém se atrevia a repetir em voz alta. Ela própria, que era mãe, mesmo sabendo do que se tratava, não gostava de tocar no assunto. No entanto, acabou dizendo:
− Não, ele não vem mais, se tornou verdadeiro bicho do mato… A pobre Louisette, tão bonitinha, tão branca, tão meiga! Era boa comigo, teria cuidado de mim, enquanto Flore, Deus do céu! Não estou reclamando, mas com certeza tem alguma coisa de errado, faz só o que lhe dá na cabeça e desaparece por horas. É cheia de orgulhos e, além disso, violenta! Tudo isso é triste, bem triste.
Ouvindo, Jacques continuava a seguir com os olhos o carroceiro, que naquele momento atravessava a linha. Mas as rodas se complicaram nos trilhos e ele precisou usar o chicote, enquanto Flore gritava, atiçando os cavalos.
− Diabos! – exclamou o rapaz. – Não pode um trem chegar agora… Seria um massacre!
− Quanto a isso não tem perigo – continuou tia Phasie. – Flore pode às vezes ser esquisita, mas sabe o que faz e abre o olho… Graças a Deus, há cinco anos não temos acidente. Antes, um homem foi estraçalhado. Na nossa área, tivemos apenas uma vaca que quase descarrilhou um trem. Pobre animal! O corpo ficou aqui e a cabeça foi parar lá perto do túnel… Mas com Flore, podemos dormir sossegados.
O carroceiro já havia atravessado e afastavam-se os sacolejos profundos das rodas nas beiradas do caminho. Phasie voltou então à sua preocupação constante, centrada na saúde, tanto dos outros quanto dela mesma.
− E você, as coisas estão realmente boas, agora? Você se lembra, quando vivia conosco, dos problemas que tinha e dos quais o doutor não entendia nada?
Voltou aquela vacilação inquieta do olhar de Jacques.
− Estou muito bem, madrinha.
− Mesmo? Desapareceu tudo? Aquela dor que atravessava a sua cabeça, por trás das orelhas, e os acessos bruscos de febre, a tristeza que o levava a se esconder como um bicho, no fundo da toca?
À medida que ela falava, Jacques ia se sentindo cada vez mais perturbado, num tal malestar que acabou se vendo forçado a claramente interrompê-la.
− Garanto que estou muito bem… Não tenho mais nada, nada mesmo.
− Que bom, melhor assim, garoto!… Não seria por você estar mal que eu me curaria. Além disso, na sua idade, o normal é ter saúde. Ah, nada melhor do que a saúde! Foi muito amável ter vindo me visitar, em vez de ir se divertir na cidade. Não é mesmo? Vai jantar conosco e dormir lá em cima no sótão, ao lado do quarto de Flore.
Mas outra vez o som da buzina interrompeu a conversa. A noite havia caído e os dois, voltando-se para a janela, só confusamente distinguiram Misard falando com outro homem. As seis horas acabavam de soar, ele passava o serviço ao substituto, o sinaleiro da noite. Ia finalmente estar livre, depois de doze horas naquela cabana, tendo apenas uma mesinha, sob a prateleira dos aparelhos, um banquinho e um fogão aquecedor, cujo calor intenso o obrigava a manter quase o tempo todo a porta aberta.
− Pronto, ele vai voltar! – murmurou tia Phasie, voltando a ter medo.
O trem anunciado vinha chegando, bem pesado e comprido, numa barulheira cada vez mais alta. O rapaz precisou se curvar para que a doente o ouvisse. Comovia-se com o estado miserável em que a via e queria lhe dar algum alívio.
− Ouça, madrinha, caso ele realmente tenha más intenções, talvez mude de ideia, sabendo que estou envolvido… Seria melhor que confiasse a mim os mil francos.
Ela novamente se revoltou.
− Meus mil francos! Nem a você nem a ele! Já disse que prefiro morrer!
Nesse instante, o trem passou com a sua violência de tempestade, como se varresse tudo à frente. A casa tremeu, resistindo à rajada de vento. Era um comboio que seguia para Le Havre muito carregado, pois no dia seguinte, domingo, haveria festa de lançamento ao mar de um novo navio.[5] Apesar da velocidade, pelos vidros iluminados podia-se ver que os compartimentos estavam cheios, com fileiras alinhadas de cabeças, uma ao lado da outra, perfiladas. Sucediam-se e desapareciam. Quanta gente! Ainda uma multidão, multidão sem fim, no rufar dos vagões, do apito dos aparelhos, da sinalização do telégrafo, do toque dos sinos! Era como um corpo enorme, um ser gigantesco deitado no chão, com a cabeça em Paris, as vértebras ao longo da linha, os membros se expandindo pelos entroncamentos, os pés e as mãos em Le Havre e outras estações de chegada. E essa criatura passava, passava, mecânica, triunfante, seguindo para o futuro com uma retidão matemática, ignorando obstinada o que sobrava de gente, daqueles que ficavam nas duas margens, ocultos e vivos, em eterna paixão e eterno crime.
Foi Flore quem entrou primeiro. Acendeu uma pequena lamparina a querosene, sem quebra-luz, e pôs a mesa. Não se trocou uma palavra, ela apenas lançou um rápido olhar na direção de Jacques, que estava de pé e de costas, diante da janela. No fogão, uma sopa de repolho se mantinha quente. Já estava sendo servida quando Misard apareceu. Não demonstrou surpresa ao ver o rapaz. Talvez o tivesse percebido ao chegar, mas nada perguntou, sem qualquer curiosidade. Um aperto de mão, três palavras rápidas e nada mais. Jacques precisou repetir, por iniciativa própria, a história da biela quebrada e sua vontade de visitar a madrinha e passar a noite. Misard se contentava em menear a cabeça, aprovando tudo aquilo. Sentaram-se e comeram sem pressa, em silêncio. Phasie, que desde a manhã não havia tirado os olhos do caldeirão em que fervia a sopa de repolho, aceitou um prato. O marido se levantou e pegou para ela sua água férrea,[6] que Flore havia esquecido, uma garrafa com alguns pregos dentro e na qual a doente nem tocou. Sempre humilde, frágil e com uma tosse persistente, ele não parecia notar os olhares ansiosos com que a mulher seguia seus menores movimentos. Ela pediu sal, que não tinha sido posto na mesa, e ele observou que fazia mal salgar tanto a comida. Era o que a deixava naquele estado. Mas se levantou e trouxe uma pitada numa colher, que foi aceita sem desconfiança, uma vez que o sal purifica tudo, dizia ela. Falou-se do tempo realmente ameno dos últimos dias e de um descarrilhamento que acontecera em Maromme. Jacques já estava se convencendo de que a madrinha inventava pesadelos acordada, pois nada via de suspeito no homenzinho solícito, de olhos vagos. Continuaram à mesa por uma hora. Duas vezes, ouvindo a buzina, Flore se retirou por um momento. Os trens passavam, balançavam os copos na mesa, mas ninguém prestava a menor atenção a isso.
Novo toque de buzina e dessa vez Flore, que tinha acabado de tirar os pratos, não voltou mais. Havia deixado a mãe e os dois homens à mesa, com uma garrafa de aguardente de sidra. Os três lá ficaram por mais meia hora. Em seguida Misard, que há algum tempo fixava olhos perscrutadores num ângulo da sala, pegou seu boné e saiu, dizendo apenas boa-noite. Praticava pesca ilegal em riachos das redondezas, que tinham ótimas enguias, e nunca se deitava sem antes ir ver as armadilhas colocadas.
Assim que se retirou, Phasie olhou firmemente o afilhado.
− E agora, acredita? Não viu que ficava olhando aquele canto ali?… Acha que posso ter escondido o dinheiro atrás do pote de manteiga… Não sou boba! Tenho certeza de que hoje à noite vai olhar atrás do pote, para confirmar.
Mas começou a ter suores e o tremor agitou seus membros.
− Veja só, de novo! Ele me deu alguma coisa, estou com um gosto ruim na boca como se tivesse engolido moedas velhas. E Deus sabe que não aceitei nada que viesse dele! Dá vontade de desistir… Essa noite não aguento mais, é melhor ir me deitar. Vou me despedir logo, meu filho, pois se for sair às sete e vinte e seis será cedo demais para mim. Mas você volta, não é? Vamos esperar que eu ainda esteja por aqui.
Ele precisou ajudá-la a chegar ao quarto e ela se deitou e dormiu, agitada. Sozinho, ficou na dúvida, achando que devia subir e ir descansar também, no canto previsto no celeiro. Mas eram apenas dez para as oito e teria muito tempo para dormir. Resolveu então sair, deixando arder a luz do querosene na casa vazia e adormecida, sacudida de vez em quando pelo brusco estrondo dos trens.
Notas:
[1] Jacques é filho de Gervaise Macquart e Auguste Lantier, que têm sua triste história contada em L’Assommoir, sétimo volume da saga dos Rougon-Macquart.
[2] A École Nationale Supérieure des Arts et Métiers é hoje uma escola técnica de nível superior. Foi fundada em 1788 peloduque de La Rochefoucauld, precursor da difusão da máquina a vapor na França. Com a crescente industrialização, a Escola foi se especializando cada vez mais, mantendo sempre um espírito liberal, sendo malvista pelos meios mais conservadores. À época do romance, propunha-se a formar “chefes de ateliês e operários especializados nas artes particularmente úteis às indústrias da madeira e do ferro”, segundo o seu programa.
[3] Os sinaleiros eram encarregados de fechar a passagem atrás de cada trem e telegrafar avisando a proximidade de suachegada ao posto subsequente, para então reabrir a via ao trem seguinte.
[4[ Pequeno carro mecânico usado em manobras, para transporte de material ou socorro.
[5] Le Havre é o segundo porto mais importante da França (sendo Marselha o primeiro) e o principal para as ligações com asAméricas. No séc.XIX contava também com importantes estaleiros navais.
[6]Água em que se esfriava um ferro em brasa ou deixavam-se enferrujar pregos; era considerada revigorante.
(A besta humana; tradução e notas de Jorge Bastos)
(Ilustração: Claude Monet)
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