segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

FOGO DO FINAL, de Ana Cristina César

 




Escrevendo no automóvel.

Pedra sobre pedra: você estava pra chegar.

Numa providência, me desapaixonei, num risco, numa frase:

Não adiantam nem mesmo os bilhetes profanos pela grande imprensa.

Saudades do rigor de Catarina, impecável riscando o chão da sala.

Ancorada no carro em fogo pela capital: sightseeing no viaduto para a Liberdade. Caio chutando pedrinhas na calçada, damos adeus passando a mil, dirijo em círculo pelo maior passeio público do mundo, nos perdemos - exclamo num achado -, é tardíssimo, um deserto industrial com perigosas bocas imperguntáveis.

Não precisa responder.

Envelopes de jasmim.

Amizade nova com o carteiro do Brasil.

Cartões postais escolhidos dedo a dedo.

No verso: atenção, estás falando para mim, sou eu que estou aqui, deste lado, como um marinheiro na ponta escura do cais.

É para você que escrevo, hipócrita.

Para você - sou eu que te seguro os ombros e grito verdades nos ouvidos, no último momento.

Me jogo aos teus pés inteiramente grata.

Bofetada de estalo - decolagem lancinante baque de fuzil. É só para você y que letra tán hermosa. Pratos limpos atirados para o ar. Circo instantâneo, pano rápido mas exato descendo sobre a tua cabeleira de um só golpe, e o teu espanto!

Não tenho pressa.

Neste lago um vapor, neste lago.

Por enquanto não tem luz de lado amenizando a noite; nem um abajur.

Uma sentinela: ilha de terrível sede.

Hoje não estou me dando com mulheres, ele responde, enfurecido, e bate o telefone num tropel.

As mulheres pedem: vem cá, te trato, faço um chá, mas nada, ele não vai mais à casa de ninguém e faz récita sozinho, como se não fosse com ninguém.

Meu velho:

Antes te dava chás de cadeira alternados com telefonemas de consultas: que faço com a mulher que mente tanto e me calunia pelas costas, ou o homem que pede que eu apenas faça sala para o seu silêncio?

O chá abria, mas eu queria uma quiromancia, um olho clínico, mundano, viajado, uma resposta aguda, uma pancada no miolo. Quem sabe uma corrida por fora da tabela, meio em zigue-zague, motorista de perícia desvairada.

Comprou carteira no Detran? E suicidaram-se os operários de Babel. Isso foi antes. Agora irretocável prefiro ficar fora, só na capa do seu livro.

Este é o jasmim.

Você de morte.

Não posso mais mentir. Corto meu jejum com dedos de prosa ao telefone, meu próprio fanatismo em ascensão: "O silêncio, o exílio, e a astúcia"?

Engato a quarta ao som de Revolution.

Descontinuidade. Iluminações no calçadão

Ultimamente deu pra me turvar a vista,

Atleta não sou mais a mesma, vertigem das alturas.

Você está errado: não é O romance da longa vida que começa. Não foi nossa razão que deu com os burros n'água. Nem o frio na espinha dentro do ar engarrafado no aterro do Flamengo. Rush. Não foi a pressa. O estabanamento na escada em espiral. O livro que falta na estante e no entanto deveria ficar lá onde está. A amizade recente com o carteiro do Brasil, que entra vila adentro e bate na janela e me entrega o envelope pelo nome. Os grunhidos do ciúme. Minhas escapadas pelo grande mundo, suas retiradas para dentro da sólida mansão. Não foi nada disso. Então O quê?

26 de março.

Preciso começar de novo o caderno terapêutico. Não é como o fogo do final. Um caderno terapêutico é outra história. É deslavada. Sem luvas. Meio bruta. É um papel que desistiu de dar recados. Uma imitação da lavanderia com suas máquinas a seco e suas prensas a vapor. Um relatório do instituto nacional do comércio, ríspido mas ditoso, inconfessadamente ditoso. Nele eu sou eu e você é você mesmo. Todos nós. Digo tudo com ais à vontade. E recolho os restos das conversas, ambulância. Trottoir na casa. Umas tantas cismas. O terapêutico não se faz de inocente ou de rogado. Responde e passa as chaves. Metálico, estala na boca, sem cascata.

E de novo.



(A teus pés)



(Ilustração: Alyssa Monks)

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