quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

ELOGIO DA TRADUÇÃO, de Alessandro Francisco





É […] essencial formular um contraimaginário que se oponha a este imaginário demente de uma sociedade sem estrangeiros.

Achille Mbembe



Bárbaros, nós o seremos, de maneira voraz.

Barbara Cassin



O título deste escrito não foi escolhido a esmo. Situa-se na sequência de uma discussão urgente iniciada pelo colega Charles Feitosa, em seu artigo Elogio da migração, publicado [neste mesmo blog].

A discussão é urgente, como o disse, numa era de nazismo montante: há por toda parte um discurso de pureza que se entrelaça nos diálogos mais habituais, presente também nas esferas da Ciência e da Filosofia.

Ao abordar o tema da tradução, tento permanecer no âmbito da discussão inaugurada por Charles Feitosa, percorrendo, entretanto, uma vereda paralela: aquela que me conduz ao encontro da diversidade das línguas. E por isso renuncio, de imediato, a qualquer abordagem normativa ou gramatical. Conquanto reconheça seu valor, a gramática não deixa de ser a abstração de uma língua.

Iniciei a aventura de traduzir provocado pela música, mais precisamente pela ópera. O que dizia a Königin der Nacht (Rainha da noite), em sua primeira aparição na ópera Die Zauberflöte (A flauta mágica) de Mozart, ao enunciar O zittre nicht, mein lieber Sohn? Majestosa, poderosa e brilhante figura que me encanta desde a infância. O que narrava Les oiseaux dans la charmille, cantada pela boneca Olympia, em Les contes d’Hoffmann (Os contos de Hoffmann), de Offenbach? O que tanto tagarelava Don Bartolo a Rosina, em Il barbiere di Siviglia (O barbeiro de Sevilha), de Rossini, na ária A un dottor della mia sorte? Que trava-línguas era aquele que me fazia rir mesmo sem compreendê-lo?

Isso tudo me motivou, muito cedo, a penetrar num mundo insólito, pois eu não falava e sequer compreendia aquelas línguas todas, e reconheço que, ainda hoje, não as domino com a destreza que reivindicam. Cada língua me apresentava um mundo próprio e, para complicar, um mundo em que palavras e sons estavam já costurados num discurso cantado. Todavia, tratava-se, aí, de um exercício até certo ponto solitário: comparava as diversas traduções de uma mesma ária, conforme apresentadas nos livretos dos LPs, e depois dos CDs, recorrendo regularmente aos dicionários de minha mãe e de minha tia. A estes, que, na época, já eram muitos, juntam-se os meus, ocupando atualmente uma estante inteira.

Vários anos depois, foi Salma Tannus Muchail a me provocar. Para a preparação de um seminário, ainda no mestrado, foi preciso traduzir um texto francês. Passamos três madrugadas juntos: o texto e eu. Ao final da tradução, o enviei a dois amigos que dominavam a língua. Me lembro do aprendizado sem tamanho que foi discutir suas observações acerca de excertos de minha versão em língua portuguesa – passagens por vezes titubeantes, outras tantas duvidosas, quase sempre equivocadas. Desde então, não cessei de traduzir e mesmo de, aqui ou ali, me lançar na aventura do intérprete. Loucura! Realizar uma tradução consecutiva é sempre esgotante, embora seja uma oportunidade ímpar de instrução.

Ora, o exercício da tradução se revelou uma atividade de duplo aprendizado: compreender como se diz algo em outra língua – em outra cultura – e perceber o quanto algo dito numa língua é quase sempre intraduzível. Assim, por um lado, se trata de levar algo de uma língua à outra; por outro, de saber que esta migração não se dá por meio da assimilação, mas da diferenciação.

Há línguas, como o árabe e o hebraico, em que a conjugação dos verbos – por intermédio das desinências – diferencia o gênero daquele que fala e de seu interlocutor. Na língua portuguesa, dizemos eu moro em São Paulo e você mora no Rio de Janeiro sem que o gênero esteja explícito no uso do verbo. Na língua inglesa, por exemplo, o pronome you serve tanto nos diálogos formais como nos informais, ou seja, é usado como você e como senhor ou senhora, por seu turno, sem diferenciação de gênero.

A diversidade se dá, igualmente, num registro mais fino: algo que é dito numa língua expressa seu modo singular de ser e a experiência particular que uma dada cultura faz do mundo. Eu gosto de chocolate, j’aime le chocolat, mi piace il cioccolato e ich mag Schokolade são modos diversos de se relacionar com aquilo de que se gosta, que se aprecia, que se deseja. Os verbos gostar, aimer, piacere e mögen nos apresentam não somente nuances distintas de uma mesma experiência, mas também vivências diversas que se fazem do mundo. Não obstante, a tradução constitui sempre a possibilidade de tornar algo compreensível para alguém que não conhece uma dada língua.

Ela propicia ainda o encontro com nossa própria língua. Ao se traduzir um escrito, é possível conhecê-la mais profundamente, compreende-se a singularidade de nossa própria cultura. Verter algo de uma língua estrangeira para a nossa nos arremessa aos dicionários e vocabulários, fazendo-nos resgatar palavras já esquecidas ou de uso raro. É o caso do termo francês ailleurs, que me fez recuperar o nosso alhures. Ou quando descubro que parier (em francês apostar) pode ser dito parear ou parar, ambos também apostar, arriscar.

E se mergulharmos, então, nos diferentes modos de falar a mesma língua? O Brasil, com sua formidável multiplicidade de vocabulários e de entonações, nos convoca continuamente a nos conhecer, a experimentar modos diversos de viver.

A língua nomeia uma coisa e, no ato da nomeação, aporta uma perspectiva que constitui a própria coisa. Ela é aquilo por meio do que pensamos. Em grego, como bem observou a filóloga e filósofa Barbara Cassin – de cujo livro Éloge de la traduction tomei emprestado o título deste artigo –, um vocábulo reúne duas noções diversas, dizendo-as de um só modo: discursividade e racionalidade, em latim orario e ratio, se dizem λόγος (lógos).

Outro pesquisador, o Professor de História da Filosofia Medieval do Collège de France, Alain de Libera, evidencia, em sua aula inaugural de 13 de fevereiro de 2014, que, para um medievalista, por exemplo, editar, analisar e traduzir são práticas indissociáveis. E se traduzir advém do latim tradere – levar algo de um lugar a outro (daí a palavra tradição), a tradução é aquilo que faz migrar, de um espaço a outro, um modo de designar o mundo, uma maneira de se relacionar com ele, um jeito de pensar. Neste movimento migratório, transformam-se a cultura que acolhe o discurso traduzido e o próprio discurso.

Assim sendo, a tradução, compreendida aqui como postura – e não apenas como técnica –, promove a migração do pensamento de um sistema a outro: na mesma cultura em diferentes eras (o português de Antonio Vieira e aquele de Guimarães Rosa); em culturas ocidentais de territórios distintos (o francês de Jean d’Ormesson e o português de José Saramago); em culturas cujas condições de possibilidade dos discursos e mesmo cuja escrita são totalmente díspares (o inglês de Philip Roth, o árabe de Adonis, o hebraico de Amos Oz e o japonês de Kenzaburo Oe). Concomitantemente, abraçar a postura da tradução é deparar os intraduzíveis no próprio ato em que o pensamento se põe a migrar.

Dirijamo-nos, a seguir, a sistemas de pensamento diversos do ocidental, ainda que estejam circunscritos ao território que porta este nome (Ocidente). No sábado recente tive o prazer de conhecer Jaider Esbell, do povo Macuxi (RR), e Denilson Baniwa, do Alto Rio Negro (AM). Dois grandes artistas, duas pessoas extraordinárias, representantes de culturas riquíssimas, que visitavam os amigos Silvana e Walter Gomes, da Amoa Konoya, casal que também tenho por minha família.

A conversa amistosa se inicia com Jaider, tomando por tema suas pinturas – palavra que reduz sobremaneira seu modo de expressão artístico. Dois sentimentos tomaram conta de mim. Primeiramente fiquei pasmo, perplexo. Em seguida, um pouco incomodado. Jaider expunha o modo como concebeu cada uma de suas telas, em língua portuguesa, fazendo uso de palavras eruditas. Discurso digno de uma conferência universitária. Prontamente, senti-me bastante incomodado, porque ele fizera todo o trabalho por mim, isto é, não houve qualquer dificuldade em compreender o que explicou. Ele expressava com maestria, e mesmo com virtuosidade, toda a sabedoria ameríndia presente numa dada tela utilizando-se da “minha” língua portuguesa. A exposição foi tão esmerada que não pude – porque não precisei – dar qualquer passo em direção à sua cultura e à sua língua. O incômodo que vivenciei decorreu do impecável e rigoroso discurso de Jaider, que não me permitiu – ratifico, porque não foi preciso – experimentar qualquer estranheza no processo de compreensão do Outro.

Denilson, do povo Baniwa, me fez saber, por seu lado, de um encantador evento na esfera da diversidade das línguas ameríndias. Ocasionalmente, se encontra com outros povos e descobre conseguir entender e fazer-se entender num diálogo em que cada qual faz uso de sua própria língua. É o que acontece quando se junta a representantes dos povos Terena e Ashaninka, por exemplo, que partilham com os Baniwa as línguas chamadas arawak.

Nesta conversa sobre as criações artísticas de ambos, o Mesmo e o Outro estavam presentes a todo o tempo: a língua portuguesa, a cultura Ocidental, as culturas ameríndias ditas e pensadas pela língua portuguesa, as culturas ameríndias ditas e pensadas ora na língua macuxi ora em línguas arawak. Fascinante encontro com o Outro que nos nutre.

Voltemos ao Mesmo, ao sistema de pensamento denominado ocidental. Ao retomar a língua grega, em especial no âmbito dos estudos filosóficos, encontro, de tempos em tempos, a experiência do ser, do pensar e do dizer fundidas a tal ponto que me fazem experimentar, não sem fascinação, algo inteiramente outro em relação ao que denominamos pensamento. E, sem tardar, me decepciono, pois não foi esta mesma língua dos helenos a responsável pela designação βάρβαρος (bárbaros), que quer dizer estrangeiro, para qualificar aqueles cuja língua dizia bar-bar-bar, isto é, cujo discurso não era compreensível?

O vocábulo bárbaro foi criado pela língua helênica para qualificar o não-grego. O estrangeiro – não-grego – é o Outro do Mesmo. Dito diversamente, o estrangeiro é o Outro de nós mesmos. Ora, já não nos mostraram, alguns pensadores, que nós próprios fomos outros em períodos distintos de nossa história? Que somos estrangeiros aos nossos próprios olhos se tomarmos o arquivo de outras eras de nossa cultura? Foi o uso que fizemos de nossa própria Razão e de nossas línguas que maculou o estrangeiro, o Outro de nós mesmos, como o étrange (estranho, em francês; de mesma raiz que étranger, estrangeiro), o bizarro, o selvagem. É o uso que fazemos da Razão que, por vezes, impossibilita o oferecimento de nós mesmos ao Outro, considerando-o, ao mesmo tempo, um mundo a descobrir e a aprender, jamais a conquistar.

Ora, a mesma Razão que designou o estranho-estrangeiro pelo termo bárbaro tornou possível, por exemplo, na língua portuguesa, o advento de um novo sentido para este vocábulo, empregado para qualificar, agora, o que é digno de admiração: Que pensamento bárbaro! Esta língua é bárbara! Trata-se, desse modo, de não nos sabermos senão estrangeiros a todo o momento.

O artigo de Charles Feitosa, Elogio da migração, nos convida à abertura para o Outro. De minha parte, empenhei-me, aqui, em fazer ressoar seu convite por meio do tema da tradução. É preciso urgentemente que estejamos abertos a traduzir, a fazer ir e vir o pensamento, a tornar possível a migração de modos de ser para que todos se transformem simultânea e continuamente, descobrindo e potencializando, pelo encontro do Mesmo e do Outro, a polissemia de cada palavra, permitindo a invenção de novas maneiras de saber: sapere vindo de sapidus, ou seja, saboroso, referência que também devo ao querido Alain Grosrichard.

Atendamos, assim, sem demora, ao clamor patente na frase de Barbara Cassin apresentada na epígrafe deste artigo: sejamos bárbaros e de modo voraz!




(Ilustração: Renoir, 1890)







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