terça-feira, 8 de março de 2022

COMO PESSOAS BOAS SE TORNAM MÁS, de Zygmunt Bauman

  


O título desta carta é o subtítulo do livro de Philip Zimbardo, The Lucifer Effect,[1] um aterrador e angustiante estudo sobre um grupo de americanos, rapazes e moças comuns, gente boa e agradável, que se tornaram monstros quando transportados para o distante Iraque e foram incumbidos de controlar os prisioneiros acusados de intenções criminosas e suspeitos de pertencerem a uma raça inferior da espécie humana, ou de estar abaixo do que se considera humano.

Como este mundo seria seguro, tranquilo, confortável e amistoso se apenas os monstros perpetrassem atos monstruosos! Contra monstros estamos relativamente bem protegidos. Assim, podemos nos tranquilizar de que estamos seguros contra os atos malignos que os monstros são capazes de praticar e ameaçam perpetrar. Temos psicólogos para identificar psicopatas e sociopatas; temos sociólogos para nos dizer onde eles provavelmente surgem, se propagam e se congregam; temos juízes para condená-los à prisão e ao isolamento, além de policiais e psiquiatras para nos garantir que fiquem lá.

Desgraçadamente, os amáveis rapazes e moças americanos, gente boa e comum, não eram monstros. Se não tivessem sido designados para tratar com prepotência os prisioneiros de Abu Ghraib, jamais saberíamos (poderíamos conjeturar, adivinhar, imaginar, fantasiar) o que eles seriam capazes de fazer. A nenhum de nós ocorreria que aquela mocinha sorridente, indicada para uma missão além-mar, iria se destacar na invenção de formas engenhosas, extravagantes, perversas e cruéis, de ardis para fustigar, molestar, torturar e desumanizar os que estavam sob sua custódia. Na sua cidade natal e na de seus companheiros os vizinhos até hoje se recusam a acreditar que aqueles rapazes e moças, que conhecem desde crianças, são os mesmos monstros que aparecem nas fotografias das câmaras de tortura de Abu Ghraib. Mas a verdade é que são.

Na conclusão de seu longo e exaustivo estudo psicológico sobre Chip Frederick, suspeito de ter sido o líder e orientador do grupo de torturadores, Philip Zimbardo escreveu:

Nada, absolutamente nada nos antecedentes de Chip Frederick que eu consegui levantar permitiria prever que ele fosse se engajar em qualquer forma de conduta abusiva e sádica. Pelo contrário, seus registros mostram que ele não foi obrigado a trabalhar e viver numa situação anormal; ele poderia ser o rosto do soldado americano típico nos cartazes de propaganda do recrutamento militar.[2]


De fato, Chip Frederick poderia ter passado com louvor em qualquer teste psicológico e no exame rigoroso de comportamento em geral aplicado na seleção de candidatos para os serviços mais responsáveis e sigilosos, como, por exemplo, o de guardião oficial da lei e da ordem.

No caso de Chip Frederick e sua colega mais próxima e notória, Lynndie England, talvez fosse possível argumentar (ainda que sem respaldo nos fatos) que eles obedeciam a ordens e teriam sido levados a praticar atrocidades que abominavam – mansos cordeirinhos, e não lobos predadores. A única acusação contra eles que se poderia admitir, portanto, seria a de covardia e obediência exagerada aos superiores; no máximo, a acusação de abandonarem com excessiva facilidade os princípios morais que os norteavam na vida “comum”. Mas o que dizer dos que estavam no topo dos escalões burocráticos? Os que davam ordens, exigiam obediência e puniam os desobedientes? Essas pessoas sem dúvida deviam ser monstros, não?

O inquérito sobre as atrocidades cometidas na prisão de Abu Ghraib jamais resvalou os altos escalões do comando militar norte-americano; para que os graúdos fossem levados a julgamento por crimes de guerra era preciso que estivessem do lado derrotado da batalha. Mas Adolf Eichmann, o regente dos meios e métodos da “solução final” do “problema judaico”, que dava ordens aos operadores das execuções, estava no campo perdedor. Fora capturado pelos vencedores e levado aos tribunais. Houve então uma oportunidade de submeter a “hipótese do monstro” ao atento e meticuloso escrutínio dos mais respeitáveis psicólogos e psiquiatras. A conclusão final de tão completa e confiável pesquisa foi tudo, menos ambígua. Assim relata Hannah Arendt:

Meia dúzia de psiquiatras havia atestado sua “normalidade” – “pelo menos, mais normal que o meu estado depois de examiná-lo”, teria exclamado um deles, enquanto outros consideraram seu perfil psicológico, sua atitude quanto a esposa, filhos, mãe, pai, irmãs, irmãos e amigos, “não apenas normal, mas inteiramente desejável”. …

O problema de Eichmann estava no fato de que muitos eram como ele, e muitos não eram pervertidos nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade se tornava muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas.[3]

Isso deve ter sido realmente aterrador: se as pessoas normais (quase escrevi, “como você e eu”), e não os monstros, cometem atrocidades e são capazes de agir de modo perverso e sádico, então todos os crivos que inventamos para separar os portadores de desumanidade do resto da espécie humana estão errados ou foram mal concebidos, e com certeza são ineficazes. A verdade é que, para encurtar uma longa história, estamos desprotegidos (não resisto a acrescentar: “indefesos ante nossa própria morbidez”). Apesar de explorarem ao máximo sua criatividade e de tentarem tanto quanto possível “civilizar” os costumes e padrões de solidariedade humana, nossos ancestrais, e também aqueles de nós que seguem a linha de pensamento e ação dos antepassados, parecem ter se enganado.

Ataques de sadismo e paroxismos de bestialidade podem ocorrer com qualquer um. Se Eichmann era “normal”, então ninguém está a priori isento de suspeita. Nenhum dos nossos amigos e conhecidos deslumbrantemente normais estão livres disso. Nem nós. Chip Frederick e Adolf Eichmann andam por nossas ruas ao vivo e em cores, fazem fila na caixa da loja, enchem os cinemas e os estádios de futebol, viajam de trem e de ônibus. Podem até morar na casa vizinha à nossa e sentar em nossa mesa de jantar. Todos eles, em circunstâncias propícias, poderiam fazer o que Chip Frederick e Adolf Eichmann fizeram.

E quanto a mim? Se tantas pessoas podem cometer atos desumanos, não é difícil que eu me tornasse vítimas deles. Eles podem fazer essas coisas. Só que também não é difícil que eu acabe mostrando que sou um “deles”, uma “outra pessoa normal” capaz de fazer aquelas coisas com outras pessoas.

John M. Steiner criou o termo sleeper para designar uma inclinação hipoteticamente presente no indivíduo a cometer atos de violência, mas que permanece invisível e pode vir à tona em certas condições propícias [4] – ou seja, quando os fatores que a mantinham reprimida de repente se fragilizam ou são eliminados. Ervin Staub deu um importante passo ao retirar as referências à “particularidade” da proposta de Steiner e ao construir a hipótese da presença de cruéis sleepers na maioria dos seres humanos, talvez em todos: “O mal … perpetrado pelas pessoas comuns é a norma, não a exceção.”[5] Será verdade? Não sabemos e jamais saberemos, pelo menos não com alguma certeza, porque não há qualquer método empírico para comprovar essa tese.

O que podemos afirmar com segurança? Segundo, Philip Zimbardo – que coordenou uma experiência pioneira na Stanford University com pessoas selecionadas ao acaso para fazer o papel de “guardas penitenciários” que lidavam com outras pessoas, também selecionadas ao acaso, interpretando o papel e a situação de prisioneiros –, o que se pode afirmar com segurança é “a facilidade com que se extraem comportamentos sádicos de pessoas que não eram ‘tipos sádicos’”.[6]

Ou, como descobriu Stanley Milgram em suas experiências em Harvard com pessoas escolhidas aleatoriamente, às quais se pedia que aplicassem em outras pessoas uma série do que acreditavam ser choques elétricos dolorosos de magnitude crescente: “a obediência à autoridade” – qualquer autoridade, seja qual for a natureza da ordem que essa autoridade formule, mesmo que peçam às pessoas para praticar atos que lhes pareçam repulsivos e revoltantes – é “uma tendência comportamental profundamente arraigada”.[7] Se acrescentarmos a isso sedimentos quase universais da socialização, como lealdade, senso de dever e disciplina, “os seres humanos, com pouca dificuldade, são levados a matar”.

Dito de outra forma, é fácil incitar pessoas que não têm índole má a perpetrar atos de maldade. Christopher R. Browning pesquisou o itinerário confuso e invariavelmente sangrento dos integrantes do 101° Batalhão de Reserva da Polícia Alemã, recrutados para a função policial entre adultos considerados inaptos para a frente de batalha e depois destacados para participar do assassinato em massa de judeus na Polônia. Os resultados foram publicados mais tarde no livro Ordinary Men.[8] Gente que nunca antes cometera atos de violência de que se ouvisse falar, muito menos assassinatos, gente de quem jamais se suspeitaria, estava disposta a obedecer a ordem de matar (nem todos, mas a considerável maioria): atirar em mulheres e homens, velhos e crianças, todos desarmados e obviamente inocentes, pois não tinham sido acusados de crime algum, e nenhum deles com a menor intenção de ferir os policiais.

Browning descobriu que cerca de 10% a 20% pediram para ser isentados de cumprir as ordens. Havia um núcleo de matadores entusiasmados que se apresentaram como voluntários para integrar os pelotões de fuzilamento e a “caça aos judeus”; outro grupo mais numeroso era formado por policiais que atuaram como atiradores na “limpeza” dos guetos quando designados, mas que não procuravam a oportunidade de matar (e em alguns casos abstinham-se de fazê-lo); e um pequeno grupo (menos de 20%) dos que se negaram a cumprir as ordens e escaparam.

O que mais chama a atenção nesses resultados é que a distribuição estatística dos que obedeciam com zelo, dos que se negavam a obedecer e dos “nem sim nem não” era incrivelmente semelhante às reações aos comandos das autoridades por parte dos indivíduos pesquisados por Zimbardo e Milgram. Nesses casos, alguns estavam ultra ansiosos para explorar a situação e dar vazão a seus impulsos perversos; outros, mais ou menos na mesma proporção, negavam-se a praticar atos violentos quaisquer que fossem as circunstâncias; e uma extensa parcela “intermediária” de pessoas que se mostravam indiferentes, mornas, pouco engajadas ou fortemente comprometidas com um dos lados do espectro de atitudes evitava tomar posição, preferia seguir a linha de menor resistência e fazer o que a prudência ditasse e a indiferença lhes permitisse na hora.

Em outras palavras, nos três casos (possivelmente em muitos outros na categoria em que esses três estudos foram aclamados como os mais convincentes), a distribuição da probabilidade de obedecer a ordem de fazer o mal seguiu a regra conhecida em estatística como “curva normal” (às vezes chamada curva de Gauss ou curva de sino), o gráfico mais comum ou “normal” de uma distribuição de probabilidades. A Wikipédia afirma que a noção de curva de Gauss ou gaussiana indica a tendência dos resultados “a se aglomerarem em torno da média”. “O gráfico da função da densidade da probabilidade da distribuição normal tem a forma de um sino, com um pico na média.” Segundo a Wikipédia, “pela teoria do limite central, qualquer variável em que os termos da soma de fatores independentes sejam suficientemente grandes tende a uma distribuição normal”.

Levando em conta que as várias respostas comportamentais de pessoas expostas a pressões para fazer o mal revelam uma clara tendência a tomar a forma de uma curva de Gauss, podemos arriscar a suposição de que, também no caso delas, o resultado foi causado pela interferência mútua de grande número de fatores independentes. Ordens provenientes do alto comando, respeito instintivo ou profundamente arraigado (ou medo) da autoridade, lealdade reforçada pelo senso de dever ou pela disciplina – estes foram alguns desses fatores, mas não necessariamente os únicos.

Parece plausível dizer que, nas condições da modernidade líquida – caracterizada pelo afrouxamento ou dispersão das hierarquias burocráticas de autoridade e pela multiplicação de “lugares a partir dos quais as recomendações da autoridade se enunciam”, os dois fatores responsáveis por um relativo enfraquecimento e diminuição da audibilidade dessas enunciações –, outros fatores, mais individuais, idiossincráticos e pessoais (por exemplo, o caráter [...]) podem assumir um papel cada vez mais importante.

A humanidade dos seres humanos certamente teria a ganhar se isso acontecesse.



NOTAS:

1. Philip Zimbardo, The Lucifer Effect, Londres, Rider, 2007.

2. Ibid., p.344.

3. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem (Penguin, 1994), p.25-6, 276 [ed. bras., Eichmann em Jerusalém, São Paulo, Companhia das Letras, 2009].

4. Ver John M. Steiner, “The SS yesterday and today: A sociopsychological view”, in Joel

E. Dimsdale (org.), Survivors, Victims, Perpetrators, Nova York, Hemisphere, 1982 5. Ervin Staub, The Roots of Evil, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p.126.

6. Craig Haney, Curtis Banks e Philip Zimbardo, “Interpersonal dynamics in a simulatedprison”, International Journal of Criminology and Penology, n.1, 1983, p.69-97.

7. Stanley Milgram, Obedience to Authority: An Experimental View (repr. Harper, 2009).

8. Christopher R. Browning, Ordinary Men, Londres, Penguin, 2001.



(44 cartas do mundo líquido moderno; tradução de Vera Pereira)



(Ilustração: Fernando Botero – da série Abu Ghraib)


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