quinta-feira, 17 de março de 2022

THE MUSIC OF VILLA-LOBOS / A MÚSICA DE VILLA-LOBOS, de Olga Cabral

 



Someone is speaking a lost language.

It is the music of Villa-Lobos.

I try to remember: where was I

born? And from what continent

untimely torn? I might have been

a priestess among the caymans

guarding the eye-jewel of the

crocodile god. I might have sailed

orinocos of diamonds, seas of coconuts,

leased the equator for life and learned

my ancestral language.



But I have only some old sleeves of rain

in a trunk with spiders

to remember my ancestors by.

They have left me

nothing, and I have forgotten

that island of my birth

where the sun in his suit of mirrors

was seen once only with my vast fetal eye.



But in the music of Villa-Lobos

a god with a tower of green faces

comes striding across cities

of permafrost, and I am summoned

once again to the jaguar gardens

guarded by waterfalls

where the hummingbird people are at play

far from the cold auroras of the north.



Beyond modernity, we are warned

by placards in two languages that say

the same thing differently. In the yellow

wood where two roads diverge, we choose

both, not from arrogance but from

indecisiveness, which, like riding

two horses at one time, requires long

legs, strong thighs, and careless good

nature. The world flicks by, each leaf

magnified, as we sample this new bar

soap, that breakfast sandwich. Placards in

two languages praise soft drinks and party

politics. The world flicks by and bites

of speech elude their diagrams to hover

in the yellow wood. It is late and soon

the world will be different.



Tradução de Margarida Vale de Gato:



Alguém fala uma língua perdida.

É a música de Villa-Lobos.

Procuro lembrar-me: onde foi

que nasci? E de que continente

fora de tempo me dividi? Podia

ter sido vestal entre caimões

velando a gema do olho do deus

crocodilo, velejar talvez

por orinocos de diamantes, mares

de cocos, podia assumir toda a vida

o trespasse do equador para aprender

a minha língua ancestral.



Mas tenho só algumas mangas de chuva

num velho baú de aranhas

para lembrar os meus antepassados.

Não me deixaram

nada, e esqueci

essa ilha onde nasci

onde vi uma vez só

com meu vasto olho de feto

o sol no seu fato de espelhos.



Mas na música de Villa-Lobos

um deus com uma torre de verdes frontes

cruza a largos passos cidades

de piso gelado, e mais uma vez

convocam-me ao jardim dos jaguares

guardado pelas cascatas

onde brinca o povo dos colibris

longe das frias auroras do norte.



Para lá da modernidade, avisam-nos

placards em duas línguas a dizer

o mesmo de maneira diferente. No bosque

amarelado dividem-se duas estradas. Escolhemos

ambas, e não é por arrogância mas

por indecisão, coisa que, como montar

simultaneamente dois cavalos, requer pernas

compridas, coxas fortes, falta de complexos, boa

têmpera, o mundo passa e cintila, cada folha

ampliada, enquanto tomamos o novo elixir,

em loção, a sandes do pequeno-almoço. Placards

em duas línguas louvam gasosas, campanhas

políticas. O mundo passa e cintila e arranha

frases que driblam os diagramas, para pairarem

no bosque amarelado. É tarde e cedo

o mundo será diferente.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Alguém fala uma língua perdida.

É a música de Villa-Lobos.

Tento lembrar: onde foi que

nasci? E em que continente

precocemente estraçalhado? Devo ter sido

uma sacerdotisa entre os caimães

velando a jóia que é o olho do

deus crocodilo. Devo ter navegado

por orinocos de diamantes, mares de cocos,

aluguei para sempre o equador e aprendi

minha língua ancestral.



Mas só tenho umas velhas capas de chuva

num baú cheio de aranhas

para lembrar meus ancestrais.

Eles não me deixaram

nada, e eu me esqueci

que aquela é a terra de meu nascimento

onde o sol em seu terno de espelhos

avistei por uma só vez com meu olho de feto.



Mas na música de Villa-Lobos

um deus com uma torre de verdes fachadas

com pressa avança pelas cidades

de sobsolo congelado, e sou de novo

convocada aos jardins do jaguar

vigiada por quedas d’água

onde as gentes dos beija-flores se divertem

longe das auroras frias do norte.



Para além da modernidade, somos avisados

em duas línguas pelos cartazes que dizem

a mesma coisa de modo diferente. No bosque

amarelo onde dois caminhos divergem, escolhemos

a ambos, não por arrogância mas por

indecisão, o que, como montar

dois cavalos num só tempo, exige

longas pernas, coxas fortes, e descuidada boa

disposição. O mundo dá uma espiada, cada folha

ampliada, enquanto provamos essa nova sopa

de bar, o sanduíche do desjejum. Cartazes

em duas línguas elogiam bebidas e políticas

de partido. O mundo dá uma espiada e pedaços

de discurso fogem de seus gráficos para perambular

pelo bosque amarelo. É tarde mas logo

o mundo será diferente.



(Ilustração: Vicente Júnior - Vila Lobos)

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