sábado, 5 de março de 2022

TODO MUNDO TEM SUAS DIRETRIZES, de Maya Angelou

  


 O Anjo dos doces finalmente me encontrou e estava me fazendo pagar uma pena excruciante por todos os Milky Ways, Mounds, Mr. Goodbars e Hersheys com amêndoas roubados. Eu estava com duas cáries podres até as gengivas. A dor estava fora do alcance de aspirinas amassadas e de óleo de cravo. Só uma coisa podia me ajudar, e rezei com toda sinceridade para que Deus permitisse que eu me sentasse embaixo de casa e a construção despencasse em cima do lado esquerdo do meu maxilar. Como não existia dentista Negro em Stamps, nem médico, na verdade, Momma resolveu dores de dente anteriores arrancando-os (um fio amarrado no dente com a outra ponta enrolada no punho), analgésicos e oração. Nesse caso específico, o remédio não se mostrou eficiente; não havia esmalte suficiente onde prender um fio, e as orações foram ignoradas porque o Anjo da Razão estava bloqueando a passagem delas.

Vivi alguns dias e noites em sofrimento lancinante, quase considerando seriamente a ideia de pular no poço, e Momma decidiu que eu tinha que ser levada a um dentista. O dentista Negro mais próximo ficava em Texarkana, a quarenta quilômetros de distância, e eu tinha certeza de que estaria morta bem antes de chegarmos à metade dessa distância. Momma disse que iríamos ao dr. Lincoln, em Stamps mesmo, e ele cuidaria de mim. Falou que ele lhe devia um favor.

Eu sabia que havia vários brancos na cidade que deviam favores a ela. Bailey e eu tínhamos visto os livros que mostravam que ela emprestou dinheiro para Negros e brancos igualmente durante a Depressão, e a maioria ainda devia a ela. Mas não conseguia me lembrar de ter visto o nome do dr. Lincoln, nem ouvido falar de um Negro tendo ido ao consultório dele como paciente. No entanto, Momma disse que nós iríamos, e colocou água no fogão para nossos banhos. Eu nunca tinha ido a um médico, e ela me disse que depois do banho (que faria com que minha boca ficasse melhor), eu tinha que colocar roupas de baixo limpas, engomadas e passadas do lado avesso. A dor não mudou com o banho, e eu soube nessa hora que a dor era mais séria do que a que qualquer outra pessoa já tinha sentido.

Antes de sairmos do Mercado, ela me mandou escovar os dentes e lavar a boca com Listerine. A ideia de abrir meus maxilares apertados aumentou a dor, mas ao ouvir sua explicação de que quando se vai a um médico é preciso se limpar toda, e principalmente a parte que vai ser examinada, reuni coragem e destravei os dentes. O ar frio na minha boca e o movimento dos molares abalou o que restava da minha razão. Fiquei paralisada de dor, minha família quase teve que me amarrar para tirar a escova de dentes. Não foi pequeno o esforço que me fez sair para a rua e ir até o dentista. Momma falou com todas as pessoas no caminho, mas não parou para conversar. Ela explicou com a cabeça virada para trás que estávamos indo ao médico e que “daria os devidos cumprimentos” no caminho de volta.

Até chegarmos ao lago, a dor era o meu mundo, uma aura que me envolvia em um raio de um metro. Depois que atravessamos a ponte para o terreno dos brancos, um pouco de sanidade surgiu. A toalha branca, que estava passada embaixo do meu queixo e amarrada na cabeça, tinha que ser arrumada. Se era para morrer, isso tinha que ser feito com estilo se a morte ocorresse na parte branca da cidade.

Do outro lado da ponte, a dor pareceu diminuir, como se uma brisa branca tivesse soprado as pessoas brancas para longe e esmagado tudo no bairro — inclusive meu maxilar. A estrada de cascalho era mais lisa, as pedras eram menores e os galhos das árvores caíam pelo caminho e quase nos encobriam. Se a dor não diminuiu, a paisagem familiar, mas ainda estranha, me hipnotizou a ponto de acreditar que tinha diminuído.

Mas minha cabeça continuou latejando com a insistência ritmada de um baixo. E como uma dor de dente podia passar pela prisão, ouvir as canções dos prisioneiros, os blues e gargalhadas deles, e não mudar? Como um ou dois ou até uma boca inteira cheia de raízes de dentes furiosas podia encontrar uma horda de crianças lixentas da pobreza branca, aguentar o esnobismo idiota e não se sentir menos importante?

Atrás do prédio que abrigava o consultório do dentista passava um caminho estreito usado por criados e comerciantes que trabalhavam no açougue e no único restaurante de Stamps. Momma e eu seguimos esse caminho até a escada dos fundos do consultório do dentista Lincoln. O sol estava forte e dava ao dia um realismo agressivo conforme subíamos a escada até o segundo andar.

Momma bateu na porta dos fundos e uma garota jovem e branca abriu a porta, demonstrando surpresa de nos ver ali. Momma disse que queria falar com o dentista Lincoln e que era para ela dizer que era Annie quem estava lá.

A garota fechou a porta com firmeza. Agora a humilhação de ouvir Momma se descrever como se não tivesse sobrenome para a garota branca foi similar à dor física. Parecia terrivelmente injusto ter dor de dente e dor de cabeça e ter que aguentar, ao mesmo tempo, o peso enorme da cor Negra.

Sempre era possível que os dentes sossegassem e talvez caíssem sozinhos. Momma disse que nós esperaríamos. Ficamos encostadas sob a luz forte do sol na amurada bamba da varanda de trás do dentista por mais de uma hora.

Ele abriu a porta e olhou para Momma. “Bem, Annie, o que posso fazer por você?”

Ele não viu a toalha em volta da minha cabeça e nem reparou no rosto inchado.

Momma disse: “Dentista Lincoln. É minha netinha aqui. Ela está com dois dentes podres que estão provocando muita dor”.

Ela esperou que ele reconhecesse a verdade da declaração. Ele não fez nenhum comentário, nem oral nem facialmente.

“Ela está com essa dor há quase quatro dias, e hoje eu disse ‘Mocinha, você vai ao dentista’.”

“Annie?”

“Sim, senhor, dentista Lincoln.”

Ele estava escolhendo as palavras da mesma forma que as pessoas procuram conchas. “Annie, você sabe que não trato pretos, pessoas de cor.”

“Eu sei, dentista Lincoln. Mas é que ela é minha netinha, e ela não vai dar trabalho nenhum...”

“Annie, todo mundo tem suas diretrizes. Neste mundo, é preciso ter diretrizes. A minha diretriz é que eu não trato pessoas de cor.”

O sol tinha fritado o óleo da pele de Momma e derretido a vaselina do seu cabelo. Ela brilhava com oleosidade quando se inclinou para sair da sombra do dentista.

“A mim parece, dentista Lincoln, que você pode cuidar dela, que não passa de um inseto. E me parece que você talvez me deva um ou dois favores.”

Ele ficou levemente vermelho. “Com ou sem favor. O dinheiro foi todo pago a você e fim da história. Desculpe, Annie.” Ele estava com a mão na maçaneta. “Desculpe.” A voz dele soou um pouco mais gentil no segundo “desculpe”, como se ele realmente estivesse se desculpando.

Momma disse: “Eu não insistiria se fosse por mim, mas não aceito um não. Não para a minha netinha. Quando você me procurou para pegar dinheiro emprestado, não precisou implorar. Você pediu, e eu emprestei. Não era minha diretriz. Eu não empresto dinheiro, mas você ia perder essa casa, e eu tentei ajudar”.

“Já está pago, e erguer a voz não vai me fazer mudar de ideia. Minha diretriz...” Ele soltou a porta e chegou mais perto de Momma. Nós três estávamos amontoados no pequeno patamar. “Annie, minha diretriz é que prefiro enfiar a mão na boca de um cachorro do que na de um preto.”

Ele não olhou para mim nenhuma vez. Deu as costas e entrou pela porta, para o frescor da sombra. Momma se retraiu por alguns minutos. Esqueci tudo, exceto seu rosto, que era quase novo para mim. Ela se inclinou e segurou a maçaneta, e com a voz suave de todos os dias disse: “Irmã, desça. Me espere lá embaixo. Logo estarei lá”.

Nas circunstâncias mais comuns, eu sabia que não devia discutir com Momma. Assim, desci a escada íngreme, com medo de olhar para trás e com medo de não olhar. Eu me virei na hora que a porta bateu, e ela tinha sumido.

Momma entrou naquela sala como se fosse autoridade. Empurrou aquela enfermeira boba para o lado com uma das mãos e entrou no consultório do dentista.

Ele estava sentado na cadeira, afiando os instrumentos do mal e colocando um ardor adicional nos remédios. Os olhos de Momma brilhavam como carvões em brasa, e os braços tinham o dobro do comprimento. Ele olhou para ela na hora que ela o segurou pela gola do jaleco branco.

“Se levante quando vir uma dama, seu canalha desdenhoso.” Sua língua estava mais fina, e as palavras saíam bem pronunciadas. Enunciadas e afiadas, como pequenos estrondos de trovão.

O dentista não teve escolha além de se levantar e ficar em posição de sentido.

Ele baixou a cabeça depois de um minuto, e sua voz soou humilde. “Sim, senhora, sra. Henderson.”

“Seu patife, você acha que agiu como cavalheiro falando comigo daquele jeito na frente da minha neta?” Ela não o sacudiu, apesar de ter força para isso. Só o segurou ereto.

“Não, senhora, sra. Henderson.”

“Não, senhora, sra. Henderson o quê?” E ela deu uma sacudida de leve, mas por causa da força, o gesto fez a cabeça e os braços dele tremerem nas extremidades do corpo.

Ele gaguejou bem mais do que o tio Willie. “Não, senhora, sra. Henderson, me desculpe.”

Deixando transparecer apenas um pouco da repugnância, Momma o jogou de volta na cadeira de dentista. “Lamentar não adianta muito, e você é o dentista mais lamentável em que já botei os meus olhos.” (Ela podia escorregar nas frases porque tinha um controle tão eloquente da língua.)

“Eu não pedi que você peça desculpas na frente de Marguerite porque não quero que ela conheça meu poder, mas estou dando uma ordem a partir de agora. Vá embora de Stamps até o pôr do sol.”

“Sra. Henderson, não tenho como pegar meu equipamento...” Ele estava tremendo horrivelmente agora.

“Isso me leva à minha segunda ordem. Você não vai atuar como dentista nunca mais. Nunca! Quando estiver acomodado na próxima cidade, você vai ser um vegetariano que cuida de cachorros com sarna, de gatos com cólera e de vacas com epizootia. Está claro?”

Havia saliva escorrendo pelo queixo dele, e seus olhos se encheram de lágrimas. “Sim, senhora. Obrigado por não me matar. Obrigado, sra. Henderson.”

Momma deixou de ter três metros de altura e braços de dois metros e disse: “De nada por nada, seu pulha, eu não perderia tempo matando um ser inferior como você”.

Na saída, ela balançou o lencinho para a enfermeira e a transformou em um saco cinza de ração de galinha.

Momma parecia cansada quando desceu a escada, mas quem não estaria cansada se tivesse passado pelo que ela passou? Chegou perto de mim e ajeitou a toalha embaixo do meu maxilar (tinha me esquecido da dor de dente; só percebi que ela foi delicada com as mãos para não despertar a dor). Ela segurou minha mão. Sua voz não mudou. “Venha, irmã.”

Achei que estávamos indo para casa, onde ela prepararia uma mistura para eliminar a dor e talvez me dar dentes novos. Dentes novos que cresceriam da noite para o dia nas minhas gengivas. Ela me guiou na direção da farmácia, que fica na direção oposta do Mercado. “Vou levar você ao dentista Baker em Texarkana.”

Fiquei feliz depois de toda a função de ter tomado banho e passado desodorante Mum e talco Cashmere Bouquet. Foi uma surpresa maravilhosa. Minha dor de dente tinha passado a ser uma dor solene, Momma tinha destruído o homem branco do mal e nós faríamos uma viagem a Texarkana, só nós duas.

No ônibus Greyhound, ela pegou um assento de corredor na parte de trás e me sentei ao lado dela. Eu estava sentindo tanto orgulho de ser sua neta que parte de sua magia devia estar sendo transferida para mim.

Ela perguntou se eu estava com medo. Só balancei a cabeça e me encostei ao braço marrom e fresco. Não havia chance de um dentista, principalmente um Negro, ousar me machucar. Não com Momma comigo. A viagem foi comum, só que ela passou o braço em volta de mim, o que foi uma coisa bem incomum para Momma.

O dentista me mostrou o remédio e a agulha antes de adormecer minhas gengivas, mas se não tivesse mostrado eu não teria me preocupado. Momma ficou logo atrás dele. Os braços estavam cruzados, e ela verificou tudo que ele fazia. Os dentes foram extraídos, e ela comprou uma casquinha de sorvete para mim na janela lateral de uma farmácia. A volta para Stamps foi tranquila, só que eu tinha que cuspir em uma latinha bem pequena de rapé que ela conseguiu para mim, o que foi bem difícil com o ônibus sacolejando pelas nossas estradas de terra.

Em casa, ela me deu uma solução salina quente, e quando enxaguei a boca, mostrei a Bailey os buracos, onde o sangue seco parecia uma cobertura de torta. Ele disse que fui corajosa, e essa foi minha deixa para revelar nosso confronto com o desqualificado do dentista e os poderes incríveis de Momma.

Tive que admitir que não ouvi a conversa, mas o que mais ela poderia ter dito além do que eu disse que ela disse? O que mais poderia ter feito? Ele concordou com minha análise de um jeito meio morno, e saltitei com alegria (afinal, tinha estado doente) para o Mercado. Momma estava preparando nossa refeição noturna, e tio Willie estava encostado no batente da porta. Ela deu a própria versão.

“O dentista Lincoln ficou arrogante. Disse que preferia botar a mão na boca de um cachorro. E quando lembrei a ele o favor, ele o descartou como se fosse uma poeirinha. Bom, mandei a irmã lá para baixo e entrei. Eu nunca tinha entrado no consultório dele, mas encontrei a porta de onde ele arranca os dentes, e ele e a enfermeira estavam lá juntinhos. Só fiquei ali parada até eles me verem.” Barulho das panelas no fogão. “Ele pulou como se tivesse se sentado em um alfinete. Disse ‘Annie, eu já falei, não vou mexer na boca de preto nenhum’. Eu disse ‘Alguém vai ter que fazer isso então’, e ele disse ‘Leve ela pra Texarkana, no dentista de pessoas de cor’, e foi quando eu falei ‘Se você me pagasse meu dinheiro, eu teria condição de levá-la’. Ele disse ‘Já foi tudo pago’. Falei que tudo tinha sido pago, menos os juros. Ele disse ‘Não tinha juros’. Eu disse ‘Tem agora. Aceito dez dólares como pagamento integral’. Você sabe, Willie, não era a coisa certa a fazer, porque emprestei aquele dinheiro sem pensar.

“Ele mandou aquela enfermeira metida dele me dar dez dólares e me fazer assinar um recibo de ‘pagamento integral’. Ela entregou o dinheiro pra mim e assinei os papéis. Apesar de por direito ele já ter pago antes, eu pensei, se ele vai ser mau assim, vai ter que pagar por isso.”

Momma e o filho riram e riram da maldade do homem branco e do pecado de retribuição dela.

Eu preferia a minha versão.

 

 (Eu sei por que o pássaro canta na gaiola; tradução de Regiane Winarski)

 

(Ilustração: Tim Okamura – Rosie)



 

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