sábado, 26 de março de 2022

A ESTÓRIA DA SALAMANCA DO JARAU, de Érico Veríssimo

 


Em dezembro daquele ano de 1951, aconteceu a Tibério algo que lhe mudou a vida por completo, fazendo-o esquecer as humilhações a que o Presidente o submeteu.

Um dia o telefone de sua casa tilintou, e ele pegou o fone, já irritado, como sempre, pois não se havia habituado ainda àquela engenhoca, pela qual tinha uma má vontade atávica.

– Pronto! – gritou como quem espera ouvir e dizer desaforos.

– É o Cel. Tibério? – perguntou uma voz melíflua de mulher. 

– Quem deseja falar com ele?

– A Venusta.

Ao ouvir o nome da caftina, Tibério olhou instintivamente dum lado para outro para verificar se havia alguém mais na sala ou proximidades. Pigarreou e disse:

– Um momento. – Largou o fone e foi fechar a porta. Não haveria perigo de outra pessoa escutar a conversação, pois aquele era o único aparelho existente no casarão. – Pronto. Pronto!

– É a Venusta.

– Já ouvi! Mas você não devia telefonar pra minha casa, ora essa! Já lhe disse isso mil vezes.

– Não fique brabo, coronel. É um assunto importante. Tenho um presente de Natal pro senhor.

Ele escutava, desconfiado. Aquilo só podia ser um subterfúgio para um pedido de dinheiro. Havia anos ele ajudara Venusta, uma prostituta aposentada, a montar o bordel mais fino de Antares. Emprestando-lhe dinheiro a juro baixo e prazo longo.

– Que negócio é esse de “presente”? – indagou, cauteloso.

– Eu não me esqueço do que o senhor fez por mim, Cel. Tibério.

– Está bem, está bem, fale baixo. E não precisa pronunciar o meu nome.

– Estou sozinha aqui em casa. Descobri a rapariga mais linda do mundo. Dezessete aninhos, coronel! O senhor vai ficar maravilhado.

– Novinha, hem? – Soltou uma risada áspera de tabagista. – E você vai enrolar a menina em papel celofane e me mandar por portador, hem? Quanto vai me custar essa brincadeira?

– Não estou pensando em negócio. – Como Venusta ceceava, a palavra negócio soou quase como negófio. – Não sou mal-agradecida.

– Como é a moça? Ruiva? Muito branca? Morocha?

– Morena jambo. Mas não adianta descrever pelo telefone. O senhor tem que ver ela pessoalmente.

– Onde está a bichinha?

– Aqui comigo, guardadinha no refrigerador – disse a alcoviteira com uma risadinha despudorada. – Olhe, coronel, a menina caiu na vida não faz nem uma semana.

Logo que botei o olho nela pensei no senhor. É órfã de pai e vivia com a mãe. Agora está comigo há dois dias e não foi mais pra cama com ninguém. Não deixei. Reservei ela pro senhor. Venha ver. Se não gostar, fica o dito pelo não dito. 

– E se eu gostar?

– É sua.

– Está bem. Hoje de noite apareço aí.

Ao jantar tomou apenas uma sopa leve. Depois disse à mulher que ia ao clube e provavelmente voltaria tarde. Saiu de casa a pé, mas entrou num carro de aluguel do outro lado da praça e pediu ao motorista que o deixasse à esquina duma determinada rua, na parte baixa da cidade.

O bordel da Venusta ficava numa ruela pouco iluminada e tinha nos fundos do seu pequeno quintal um portão que dava para um terreno baldio – espécie de entrada secreta ou pelo menos discreta, geralmente usada pelos senhores respeitáveis da cidade que queriam entrar naquela casa de rendez-vous sem serem vistos. Tibério apertou o botão da campainha da porta dos fundos. Venusta em pessoa veio recebê-lo, recendente a Tabu, com um vestido de algodão estampado, a cara exageradamente pintada, os cabelos oxigenados de fresco. Era uma cinquentona de carnes balofas e muito alvas, que Tibério tinha levado algumas vezes para a cama nos tempos em que ela era moça e não de todo destituída de atrativos. Subiram uma pequena escada e entraram num corredor estrategicamente mal iluminado e por fim pararam diante da porta dum quarto.

– A menina está lá dentro à sua espera, coronel. Ela já sabe quem o senhor é e está até meio nervosinha.

– Mas eu ainda não sei direito quem ela é...

– Ora, ninguém de circunstância. O pai era ferroviário e morreu esmagado por um trem, há uns quatro anos... acho que o senhor se lembra do fato. A mãe costura pra fora. Gente muito pobre. Um caixeiro-viajante fez mal pra menina e desapareceu. A mãe descobriu a coisa e botou a boca no mundo. A moça então veio pra cá, mas ninguém ainda sabe que ela está comigo. Acho que é fácil acomodar a velha com uns cobres. Deixe a coisa por minha conta.

– Essa estória está me cheirando mal. A menina é menor, a mãe pode me incomodar, fazer chantagem. Não sei... Tenho muitos inimigos. Não sei... Nunca falta um rábula filho da mãe pra pegar uma causa dessas e me extorquir dinheiro... Não sei.

Ficou ali na frente da porta murmurando “não sei... não sei...”. Mas seu corpo sabia, da cabeça aos pés, sabia com uma intensidade que aumentava com o passar dos minutos, o sangue batendo-lhe com força nas fontes, toda a sua virilidade já agressivamente esculpida, intumescida e latejante.

– Está bem – disse por fim, com voz opaca. – Já não estou pensando mais com a cabeça, mas com outra parte do corpo. Seja o que os anjos quiserem.

Venusta abriu a porta e ele penetrou no quarto como um Miúra que entra na arena.

Mais tarde, naquela mesma noite, no leito conjugal, com Lanja a seu lado, ressonando tranquilamente, Tibério recordou a hora que passara com a rapariga. Que fêmea mais bemfeita de corpo! Uma potranca de raça – cabocla de pele acetinada cor de areia úmida, seios miúdos, quadris estreitos, delicada como uma flor... Em cima dela sentira-se com vinte anos menos. E, depois de descarregar a sua primeira e furiosa onda de desejo, ficara ofegante e feliz, deitado ao lado da criaturinha.

– Onde nasceste?

– No Cacequi.

– Como é o teu nome?

– Me chamo mesmo Cleopatra, mas me tratam por Cleo.

– Bonito nome, Cleo...

E então ele pusera-se a apalpá-la devagarinho, para sentir nos dedos a contextura daquela epiderme, a elasticidade daqueles músculos, o desenho daquele corpo. Chegara a inventar um brinquedo:

– Nunca ouviste a estória da Salamanca do Jarau?

– Nunca.

– Pois era uma vez um campeiro, de nome Blau Nunes. Tinha aprendido com o fantasma dum padre renegado o caminho da furna do Jarau, onde existia um tesouro escondido, e guardado pelos bichos e assombrações mais horríveis.

– Credo!

– Faz de conta que aqui vai o Blau Nunes...

Com os dedos indicador e médio da mão direita imitou as pernas dum homem a caminhar. Blau Nunes percorreu o braço e o ombro de Cleo, devagarinho, pisando forte.

– De repente Blau avista um cerro...

E os dedos de Tibério escalam o seio direito de Cleo e quando chegam ao cume dessa macia elevação brincam com seu mamilo – “Uma pedra?” – e a rapariga se retorce, cosquenta.

“Ai! Ai! Ai!”

– Então Blau Nunes desce do cerro e começa a andar por uma linda várzea...

E agora os dedos de Tibério caminham pelo ventre levemente côncavo da menina, com lenta volúpia.

– De repente Blau Nunes avista um capão...

– Não!

E ela ergue as pernas, cruza as coxas, num movimento instintivo de defesa, procurando esconder sua furna. Mas Blau Nunes continua a andar... lá dentro está a entrada da Salamanca, do tesouro...

E os dedos de Tibério – antes, as pernas de Blau Nunes – penetram no capão e encontram a boca da furna. “Ai!” – suspira ela. – “Ai!”. Blau Nunes está alucinado.

– Onças de ouro! – exclama Tibério. – Dobrões de ouro! Joias!

E Cleo se retorce toda, rindo, excitada. Tibério Vacariano levantou-se num prisco. Lanja acordou, alarmada.

Que foi, Tibé? Estás sentindo alguma coisa? Sentado na cama, meio ofegante, ele murmurou:

– Não é nada. Perdi o sono.

– Decerto tornaste muito café.

– Pois é. O calor também está brabo. Mas não é nada, Lanja. Dorme. Eu me arranjo...

Levantou-se, acendeu um cigarro, começou a passear pela casa, de pijama, sem destino certo. A imagem de Cleo não lhe saía da mente. O cheiro dela estava nas suas narinas, nos seus dedos, na sua pele, entranhado em todo o seu corpo. Abriu a janela que dava para a praça e debruçou-se nela. Vaga-lumes lucilavam por entre árvores e arbustos. Tibério olhou para o céu e viu o Cruzeiro do Sul bem por cima da Matriz. O vento morno chegava-lhe às narinas com um cheiro de campo queimado, de mistura com recordações de infância e adolescência.

Ali na janela o Cel. Vacariano pensou na sua idade. Cinquenta e sete na cacunda! Não se podia dizer que fosse já um velho, mas moço, moço mesmo não era mais. Imaginou Cleo instalada na pensão da Venusta, recebendo qualquer homem que tivesse dinheiro para pagar o preço que a caftina pedia pelo seu esplêndido corpo. A ideia lhe era intolerável.

Voltou para a cama e só conseguiu adormecer madrugada alta. Levantou-se às oito horas, sentindo-se um tanto desmoralizado por ter “queimado o assado”, pois entre seus hábitos supersticiosos estava o de saltar da cama antes do sol nascer.

A primeira imagem que lhe veio à cabeça ao despertar foi a de Cleo, como a figura dum sonho bom.

Tornou a procurar a rapariga na noite daquele dia. E noutra manhã, barbeando-se no quarto de banho, conversou em silêncio consigo mesmo, puteou-se afetuosamente, examinou a própria cara no espelho, com um cuidado entre realista e tolerante. “Bonito sei que não sou, mas – que diabo! – há no mundo gente mais feia que eu.”

Tudo aquilo que sentia com relação à moça – refletiu – devia ser consequência da idade crítica. Sim, os homens tinham também o seu climatério. Ouvira esta palavra pela primeira vez da boca de seu médico carioca. O seu climatério finalmente chegara, e com que força!

Decidiu fazer de Cleo sua amante exclusiva, montar casa para ela. Convenceu a mãe da rapariga a vir morar com a filha, arranjou tudo com a colaboração da Venusta. Quando um novo ano entrou o Cel. Vacariano tinha o que em língua de advogado se chama de “mulher teúda e manteúda”. Sentia-se feliz e remoçado. Se Lanja desconfiava de alguma coisa, pelo menos não dava nenhuma demonstração disso.

E agora, cada vez que Tibério queria fazer amor com a amante, bastava dizer-lhe: “Vamos brincar de Salamanca?” Blau Nunes passou a ser uma personagem importante na vida de ambos. E muitas vezes Tibério Vacariano pensou num remoto antepassado seu que, segundo uma lenda da família, tinha um dia entrado na furna encantada do Jarau e andava sempre com as guaiacas cheias de onças de ouro.


(Incidente em Antares)



(Ilustração: Tainá Maneschy)




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