terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O IMPACTO HUMANO DA ERA DE GUERRAS, de Eric Hobsbawm








Falta avaliar o impacto humano da era de guerra, e seus custos humanos. O simples volume de baixas [...] é apenas parte destes. Muito curiosamente, a não ser por motivos compreensíveis, na URSS, os números muito menores da Primeira Guerra Mundial iriam causar um impacto muito maior que as imensas quantidades da Segunda, como testemunham a maior predominância de monumentos e o culto aos mortos da Primeira Guerra Mundial. A Segunda não produziu equivalentes dos monumentos ao "soldado desconhecido", e depois dela a comemoração do "Dia do Armistício" (aniversário do 11 de novembro de 1918) foi perdendo aos poucos sua solenidade de entreguerras. Talvez 10 milhões de mortos parecessem um número mais brutal para os que jamais haviam esperado tal sacrifício do que 54 milhões para os que já haviam experimentado a guerra como um massacre antes.

Sem dúvida, tanto a totalidade dos esforços de guerra quanto a determinação de ambos os lados de travá-la sem limites e a qualquer custo deixaram sua marca. Sem isso, é difícil explicar a crescente brutalidade e desumanidade do século XX. Sobre essa curva ascendente de barbarismo após 1914, voltamos a acostumar-nos, sem grande repulsa, a seu uso em pelo menos um terço dos Estados membros das Nações Unidas, incluindo alguns dos mais velhos e civilizados (Peters, 1985).

O aumento da brutalização deveu-se não tanto à liberação do potencial latente de cureldade e violência no ser humano, que a guerra naturalmente legitima, embora isso certamente surgisse após a Primeira Guerra Mundial entre um certo tivpo de ex-soldados (veteranos), sobretudo nos esquadrões da morte ou arruaceiros e "Brigadas Livres" da ultradireita nacionalista. Por que homens que tinham matado e vista matar e estropiar seus amigos iriam hesitar em matar e brutalizar os inimigos de uma boa causa?

Um motivo importante foi a estranha democratização da guerra. Os conflitos totais viraram "guerras populares", tanto porque os civis e a vida civil se tornaram os alvos estratégicos certos, e às vezes principais, quanto porque em guerras democráticas, como na política democrática, os adversários são naturalmente demonizados para fazê-los devidamente odiosos ou pelo menos desprezíveis. As guerras conduzidas de ambos os lados por profissionais, ou especialistas, sobretudo os de posição social semelhante, nãoe xcluem o respeito mútuo e a aceitação de regras, ou mesmo cavalheirismo. A violência tem suas leis. Isso ainda era evidente entre os pilotos de caças da forças aéreas nas duas guerras, como testemunha o filme pacifista de Jean Renoir sobre a Primeira Guerra Mundial, La grande illusion. Os profissionais da política e da diplomacia, quando desimpedidos pelas exigências de votos ou jornais, podem declarar guerra ou negociar a paz sem ressentimentos contra o outro lado, como boxeadores que se apertam as mãos antes de começarem a luta, e bebem uns com os outros depois. Mas as guerras totais estavam muito distantes do padrão bismarckiano ou do século XVIII. Nenhuma guerra em que se mobilizam os sentimentos nacionais de massa pode ser tão limitada quanto as guerras aristocráticas. E, deve-se dizer, na Segunda Guerra Mundial a natureza do regime de Hitler e o comportamento dos alemães, inclusive do velho exército alemão não nazista, na Europa Oriental, foi o de justificar muita demonização.

Outro motivo, porém, era a nova impessoalidade da guerra, que tornava o matar e estropiar uma consequência remota de apertar um botão ou virar uma alavanca. A tecnologia tornava suas vítimas invisíveis, como não podeiam fazer as pessoas evisceradas por baionetas ou vistas pelas miras de armas de fogo. Diante dos canhões permanentemente fixos da Frente Ocidental estavam não homens, mas estatísticas - nem mesmo estatísticas reais, mas hipotéticas, como mostraram as "contagens de corpos" de baixas inimigas durante a guerra americana no Vietnã. Lá embaixo dos bombardeios aéreos estavam não as pessoas que iam ser quimadas e evisceradas, mas somente alvos. Rapazes delicados, que certamente não teriam desejado enfiar uma baioneta na barrida de uma jovem aldeã grávida, podeiam com muito mais facilidade jogar altos explosivos sobre Londres ou Berlim, ou bombas nucleares em Nagasaki. Diligentes burocratas alemães, que certamente teriam achado repugnante tanger eles próprios judeus mortos de fome para abatedouros, podiam organizar os horários de trem para o abastecimento regular de comboios da morte para os campos de extermínio poloneses, com menos senso de envolvimento pessoal. As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistemas e rotina, sobretudo quando poderiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais. 




(A Era dos Extremos - O breve século XX - 1914-1991, tradução de Marcos Santarrita)




(Ilustração: Brueghel - mad-meg)








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