quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A BUSCA, de Márcia Tiburi








Acordo todas as noites às três horas e dezesseis minutos. Vou até o quarto de meu pai que está à espera de remédios para dormir sempre com os olhos abertos dos que morrem assustados. Sentado à beira da cama ele toma na mão esquerda a pequena xícara branca onde um dia lhe servi café. Agora cheia de água quase à borda. Ele toma o comprimido sem esperança alguma de dormir. Faço a conta dos dias em que está assim e me perco. Afrouxo a boca do relógio pensando que relógios não têm boca. Gostaria de saber onde estamos. Meu pai sobre a borda da cama, eu agora à espera de que descanse. Estou sobre o chão, sobre o andar de baixo, sobre o térreo, sobre o concreto, sobre o cascalho, sobre o tijolo em fragmentos. Ainda sobre a terra onde seremos enterrados.

Minha avó lá fora, indignada com a busca de meu avô no meio da noite. Ela sopra a terra impura e me olha de longe. Meu pai me chama pedindo mais água. Ela grita com o que lhe resta de voz que estou errada em cuidar dele, que está morto como está morto meu avô.

Vista por outro ângulo a vida, não estando, se refaz, respondo-lhe chamando-a para dentro de casa. Neste instante ela me diz que eu deveria desistir da busca ingrata sobre a qual nada sei. Dessa busca que matou meu avô, meu pai e que definirá também o meu destino.

Seus olhos já não fixam as pálpebras forçando a visão de coisa alguma. É espantoso que uma mulher tão forte e tão bonita tenha agora apenas este rosto de porca. Que busca, que busca é essa? Insisto para que me diga. Sobre mim caem as gotas de chumbo que encharcam a noite. Vendo-a a arrastar-se na terra iluminada pelas estrelas, sinto vontade de abraçá-la, mas está longe de meu alcance ainda que possamos nos reconhecer. Só o que pronuncia com a insuperável dificuldade suína que agora a consagra é que a busca de seu avô era por um ser humano.

Não sei o que fazer para movê-la de lá. Volto para dentro de casa e meu pai continua no mesmo lugar. O relógio continua parado e eu sei que a vida vai passar.



(Ilustração: Iberê Camargo)


Nenhum comentário:

Postar um comentário