Antes de se atirar nas águas barrentas do rio Capibaribe, Cirilo lembrou as humilhações sofridas de colegas e professores, que não perdoavam sua rebeldia nem seu desprezo por um modelo de ensino corrompido, em meio às sombras da repressão. Por duas vezes escapara de um massacre durante as aulas e quis desistir do confronto. Sentia um absurdo desejo de repetir João Domísio, o tio arrastado pela enchente do rio Jaguaribe, o corpo branco perfurado de balas, irreconhecível nos redemoinhos da correnteza. Não passou pela cabeça de Cirilo a questão se a vida valia a pena, nem foi a ausência de motivos lógicos para viver que o trouxe à ponte em que se debruça. Sua revolta não se filia a nenhuma causa revolucionária como a do irmão Geraldo. Teria abjurado toda verdade proclamada para continuar andando pelos becos infames do Recife, em meio ao lixo e à merda. Os suicidas jogam com a morte uma peleja cheia de malícia e sedução, trabalham estratégias ao longo de anos e o que chamam de impulso é apenas a cartada final.
Homens puxam carroças, indiferentes a Cirilo e ao manguezal sobrevivendo nas margens do rio. Será que o concreto armado substituiu alguma ponte de madeira? Vira-se em busca de trilhos de ferro, imagina se passavam bondinhos por ali. Deseja romper com o cenário em volta, mas não consegue. A memória refaz seus vínculos com o Recife, apega-se covardemente às imagens que afogará no mergulho. Cansou de procurar Geraldo, ausente da família desde que veio morar na cidade. Prometeu à mãe que cuidaria do irmão, vigiaria seus passos. Mas Geraldo sabe aonde vai, ligou-se a um partido político e faz discursos nas praças. Cirilo oscila ao movimento dos ônibus cheios de passageiros, avistados num relance. Exaustos e solitários, eles escurecem igual à tarde em que o sol e a chuva se revezam arbitrariamente.
Entre o impulso do corpo e o salto para baixo, nesse tempo mínimo, Cirilo se despede das coisinhas pequenas, sem significado aparente. Os olhos, doentes de tudo querer ver, enxergam aguapés na correnteza lamacenta e flores semelhantes ao lótus. Sujeira borra as pétalas aquáticas e refaz lembrança de outros rios e flores, num lampejo de gosto pela vida. E se desistir de morrer? As mãos se crispam na balaustrada da ponte entre ilhas do Recife, cidade cujo destino é inundar-se no Atlântico. Ele também irá sumir; encher os pulmões de lama podre e sepultar-se entre algas marinhas que o olhar não alcança. Caso sobreviva ao afogamento, morrerá de pneumonia ou remorso pelo crime de João Domísio, o fantasma cuja história o persegue desde criança.
Sabe que no último instante lançará pedidos de salvação. Sempre se deixou conduzir por um rio invisível, debatendo-se em vez de nadar aprumado como os atletas das piscinas. Enquanto a mão esquerda o afastava do desespero, a direita anotava em cadernos o que lhe parecia necessário dizer, sobrevivendo através desses sinais. Quem garante a um náufrago que seu testamento escrito num pedaço de pano, enfiado numa garrafa e atirado ao mar, será lido? E que importância tem que seja lido ou não, se ao escrever o autor se liberta da apreensão, deixando seu testemunho sobre as ruínas? Centenas de escritos se guardaram por anos debaixo da terra, em túmulos ou edifícios soterrados, à espera de quem os libertasse da mudez. O que está sob a terra é nada. Olhar para cima e encarar a luz é bem mais aprazível que morrer. Pensa nessas coisas, porém nunca lembra quem as escreveu.
O sol do Recife cega. Não menos intenso brilhava numa cidade longe sobre a cabeça da avó, do pai, da mãe e dos irmãos, no dia em que se despediram chorando à porta de casa, a mãe recuada uns passos para que não vissem suas lágrimas. O pai levaria Cirilo à rodoviária, ao ônibus e à promessa ameaçadora do Recife. Altivo, parecia alheio à contração dos dentes do filho, à força com que segurava o choro porque era interditado aos homens da família chorar. Caminhava à frente, como o deus Hermes conduzia as almas ao inferno. Na véspera, Luis Eugênio narrara a história do rei que possuía três filhos homens e cada um deles, ao atingir a idade adulta, pedia licença para deixar a casa paterna. Geraldo, o mais velho, fora embora havia quatro anos, um pouco antes do golpe militar. "Você quer minha bênção com pouco dinheiro ou minha maldição com muito dinheiro?", perguntava o pai da história, e apenas o filho mais novo escolhia a bênção e um caminho espinhoso.
Adianta recompor os cenários que o cercam, se tem certeza de que irá morrer? Importa se nesse lugar onde se equilibra precariamente existiu, no século dezenove, uma ponte de ferro ou de madeira? A concretude da ponte não diminui seu desejo de evadir-se para fora da luz, num salto que ainda não aconteceu. Fugir significa delegar a morte para outro? Quem pulará da ponte no seu lugar? Geraldo não aceita os traçados da família, as árvores genealógicas que a mãe desenrola sobre a mesa após a janta, buscando nos rostos dos filhos sinais que apenas ela reconhece. Qual ponte do Recife Geraldo cruza nesse momento, indiferente às aflições da mãe? Em casa, o pai arrancou da moldura o retrato do filho primogênito, deixando um vazio na parede, uma ausência que nenhuma imaginação preenche.
Depois de chuvas prolongadas, casas e prédios do Recife se intumescem, rebocos largam os tijolos e as pinturas das paredes mostram camadas superpostas de cores: borrões abstratos que nenhum pintor conseguiria imitar. Fedorentas e tristes de tão escuras, as ruas lembram uma cidade bombardeada. Cirilo se desloca de um mastro a ponto de desmoronar e caminha para o outro lado da ponte. Acende um farol imaginário, sinalizando em busca de salvação. Avista a rua larga da Benfica, gradis de ferro, pinhas e capitéis de passado mourisco, azulejos portugueses brilhando no sol que apenas de vez em quando mostra a cara. Poderia subir à torre mais alta do castelo construído por um senhor de engenho, enriquecido no comércio de açúcar pelo sacrifício de escravos. Senhores opulentos e arrogantes, a mesa farta de sabores. Sente um oco no estômago, não comeu quase nada desde o café. Os bolsos vazios de dinheiro, a barriga vazia de alimentos. E se despisse a roupa antes de atirar-se nas águas? Achariam que desejava se banhar no Capibaribe, do mesmo jeito que se banhava no rio Jaguaribe. O morto boiando nu pareceria desvalido, sozinho e despojado do sobrenome Rego Castro que tanto orgulha a mãe. Encontraram o tio João Domísio com todos os sinais da nobreza: jaqueta de veludo, camisa fina com abotoadores de prata, botinas de couro curtido, um anel de ouro com arabescos de flores e ramos entrelaçados. No meio das águas barrentas, o corpo preso aos destroços das margens, morto com três tiros no peito esquerdo. Longe do Recife que ele tanto amou, onde Cirilo desceu de um ônibus empurrado pela vontade do pai, arrastando a mala de sola com poucas roupas e uma caixa de livros. Ansiando por encontrar o irmão, mas sem querer repetir a história do tio assassino.
A ponto de invadir as ruas, águas barrentas cobrem as pilastras de sustentação da ponte e não é possível enxergar os moradores habituais do mangue, os caranguejos de patas sorrateiras, que nas marés baixas escalam paredes como soldados as muralhas de uma fortaleza, para tomá-la de assalto. Formam escadas uns sobre os outros, desmoronam e caem. Os de baixo desistem de sustentar os de cima, abandonam a posição inferior que ocupam na escada de equilibristas e todos retornam à lama. Dizem que a sociedade recifense reproduz o comportamento dos caranguejos: ninguém gosta de ver o outro subir na vida. Cirilo inquieta-se, acende um cigarro, procura saber a hora. Por que a preocupação com o tempo? Escuta a voz de Álvaro, um amigo com quem divide angústias e o quarto de estudante:
- Aproveita o impulso! Ou queres te matar depois de reflexões?
Álvaro cita o que os outros disseram como se fosse próprio. Fragmenta os pensamentos alheios e dessa maneira constrói seu discurso. Argumenta que os bens de cultura são propriedade de todos, estão aí para serem usados, e profetiza que a assinatura irá desaparecer em breve.
(Estive Lá Fora)
(Ilustração: Frans Post - Recife em 1645)
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