sexta-feira, 19 de junho de 2015
JÁ NÃO PODES VIVER MAIS TEMPO CONOSCO, de Cícero
Até quando, ó Catilina,
abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa
tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a
guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem
a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a
reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto
conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos?
Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem?
Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na
precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram
as tuas?
Oh tempos, oh costumes! O Senado
tem conhecimento destes factos, o cônsul tem-nos diante dos olhos; todavia,
este homem continua vivo! Vivo?! Mais ainda, até no Senado ele aparece, toma
parte no conselho de Estado, aponta-nos e marca-nos, com o olhar, um a um, para
a chacina. E nós, homens valorosos, cuidamos cumprir o nosso dever para com o
Estado, se evitamos os dardos da sua loucura. À morte, Catilina, é que tu
deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do cônsul; contra ti é que se
deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós.
Pois não é verdade que uma
personagem tão notável, como era Públio Cipião, pontífice máximo, mandou, como
simples particular, matar Tibério Graco, que levemente perturbara a
constituição do Estado? E Catilina, que anseia por devastar a ferro e fogo a
face da terra, haveremos nós, os cônsules, de o suportar toda a vida? E já não
falo naqueles casos de outras eras, como o facto de Gaio Servílio Aala ter
abatido, por suas próprias mãos, Espúrio Mélio, que alimentava ideias
revolucionárias. Havia, havia outrora nesta República, uma tal disciplina moral
que os homens de coragem puniam com mais severos castigos um cidadão perigoso
do que o mais implacável dos inimigos. Temos um decreto do Senado contra ti,
Catilina, um decreto rigoroso e grave; não é a decisão clara nem a autoridade
da Ordem aqui presente que falta à República; nós, digo-o publicamente, nós, os
cônsules, é que faltamos.
Decidiu um dia o Senado
que o cônsul Lúcio Opímio velasse para que a República não sofresse dano algum.
Pois nem uma noite passou. Gaio Graco, apesar da sua tão nobre ascendência, de
pai, de avô e de seus maiores, foi morto por causa de certas suspeitas de
revolta; juntamente com os filhos foi executado Marco Fúlvio, um consular. Com
um mesmo decreto do Senado, foi a República confiada aos cônsules Gaio Mário e
Lúcio Valério. Acaso adiaram eles mais um dia sequer a pena de morte, por crime
de lesa-república, a Lúcio Saturnino, um tribuno da plebe, e a Gaio Servílio,
um pretor?
Nós, porém, há já vinte
dias que consentimos no enfraquecimento do vigor de decisão destes homens.
Temos um destes decretos do Senado, mas está fechado nos arquivos como espada
metida em bainha; e, segundo esse decreto senatorial, tu, Catilina, deverias
ter sido imediatamente condenado à morte. E eis que continuas vivo, e vivo não
para abdicares da tua audácia, mas para nela te manteres com inteira firmeza. É
meu desejo, venerandos senadores, ser clemente; é meu desejo, no meio de
tamanhos perigos da República, não parecer indolente; mas já eu próprio de
inacção e moleza me acuso.
Há acampamentos em Itália
contra o povo romano. Estabelecidos nos desfiladeiros da Etrúria, aumenta em
cada dia o número dos inimigos; e, no entanto, o general desses acampamentos e
o comandante desses inimigos, eis que o vemos no interior das nossas muralhas e
dentro do próprio Senado, urdindo a cada instante algum atentado contra a
República. Se, neste momento, eu te mandar prender, Catilina, se eu decretar a
tua morte, o que sobretudo terei de temer, tenho a certeza, é que todos os bons
cidadãos me censurem por ter actuado tarde, e não que haja alguém a dizer que
usei de crueldade excessiva.
A mim, porém, aquilo que
já há muito deveria ter sido feito, fortes razões me levam a não o fazer ainda.
Hás-de ser morto, sim, mas só no momento em que já não for possível
encontrar-se ninguém tão perverso, tão depravado, tão igual a ti, que não
reconheça a inteira justiça desse acto.
Enquanto houver alguém que
ouse defender-te, continuarás a viver, e a viver como agora vives, cercado
pelas minhas muitas e fiéis guardas, para não poderes sublevar-te contra o
Estado. E até os olhos e os ouvidos de muita gente, sem disso te aperceberes,
te hão-de espiar e trazer vigiado como até hoje o têm feito.
(As Catilinárias,
excerto; manteve-se a ortografia original do tradutor, padre António Joaquim,
Portugal)
(Ilustação: Cícero
ataca Catilina - afresco do Palazzo Madama, Roma, século 19)
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