segunda-feira, 21 de novembro de 2022

A VELHA QUERIDA, de Dalton Trevisan


 

O calor das três da tarde, dormia a cidade sob o zumbido das moscas. O rapaz de linho branco dobrou a esquina — "Eis que eu vejo a sarça ardente" —, o asfalto mole e pegajoso debaixo dos pés. Todas as ruas desertas, mas não aquela, apinhada de gente e de tal maneira que transbordava das calçadas. "É um enterro", disse consigo, "mas não há morto". Arrastava se o estranho cortejo por dois ou três quarteirões e voltava sobre os passos na busca aflita do defunto, com grupos que, ao longo das portas, apertavam-se e de repente se desfaziam — "Onde está Verônica", indagou ele, "que não canta?" Procissão triste e preguiçosa, metade a ir ou voltar e a outra metade imóvel, enquanto o cadáver, cujo fedor sebento empesta o ar e move a asa alucinada das moscas, jazia no interior de uma das casas, ainda que ninguém soubesse qual — os curiosos insinuavam as cabeças à sua procura pelas portas e janelas escancaradas. Procissão ou enterro, seguia um destino conhecido de todos. Ele abriu caminho por entre os outros, alerta para não atropelar aqueles que estacavam sem aviso ou faziam meia volta ou enfiavam de repente a cabeça por uma das portas e tão-somente a cabeça — raríssimo o que por elas entrava. Às portas e janelas, no místico velório, estavam alinhadas as viúvas que carpiam o mesmo defunto e pareciam de ouro na sua cara pintada. Enquanto os homens (era enterro ou procissão unicamente de homens) estavam decentemente trajados, as mulheres, empurrando-se às janelas e portas, em virtude do fogo que ardia no porão das casas decrépitas, vestiam apenas calcinha e porta-seio de cores berrantes, onde predominavam o vermelho, o azul e o amarelo e, assim à vontade, eram damas de grande luxo, uma ou outra com sandália de púrpura.

Solitárias à janela ou amontoadas uma atrás da outra, nos degraus vacilantes da escada, afundados no meio, de tantos passos que os subiram e desceram, todas elas, serenas ou entoando ladainha em voz baixa e lamuriosa, repetiam o mesmo gesto em que, as pontas unidas do polegar e indicador em círculo perfeito, concebiam o símbolo da inocência perdida e, sem que movessem o braço, agitavam incansavelmente a mão em todas as portas e janelas, de tal modo sincronizadas que o rapaz de linho branco acreditava-se numa loja de relógios, com seus pêndulos balançando, e única diferença era que tais pêndulos (as mãos dessas senhoras) trabalhavam sem ruído. Assim estivesse atrás de um relógio, examinava cada uma, detendo-se às portas e, como os outros, introduzia a cabeça a fim de encarar as damas ou relógios que marcavam todos a mesma hora.

Quase nada empertigado, observava duro e fixo à sua frente, no cuidado do bêbado que não quer parecer que o é, e o faz planejar lucidamente (segundo ele) seu movimento seguinte, esquecendo sempre um pequeno detalhe que afinal o denuncia, assim por exemplo depois de se despir sem um erro à vista inquisitorial da esposa, apaga enfim a luz e imagina que está salvo, eis quando ouve a pergunta melifluamente simplória — "Querido, agora dorme de pijama e sapato?"

Com toda a cautela, pois, de não parecer embriagado, o rapaz analisava criteriosamente o mostruário de ponteiros e, consoante o seu hábito quando alcoolizado, permitia-se um comentário em tom levemente sarcástico. Resistindo aos sorrisos aliciantes dos dentes de ouro — "Olá, querida, as suas prendas morais quais são?" —, arrepiava caminho sob a lancinante queixa das carpideiras, indiferente ou insensível à dor que as fazia insistir no apelo monocórdio — "Vem cá, benzinho ... vem cá, benzinho . . . vem cá, amorzinho. . ." e algumas, indignadas de não serem atendidas por ele ou pelos outros (distinto senhor de guarda-chuva no braço, marinheiro bêbado, negro de pé descalço), depois de inúmeros acenos da mão livre — sem adiantar ou atrasar a marcha do pêndulo à direita —, furiosas de tanto gemer em vão, enlouquecidas por um gesto ou simples olhar, davam um passo à frente e, prendendo-lhes a mão ou o braço, atraíam-nos patamares adentro e eles se deixavam conduzir ou então lutavam por se desvencilhar. Soltando-os, prosseguiam tranquilamente no movimento pendular, de tal sorte automático que, conversando volúveis ou absortas em meditação, não o interrompiam e as que se ocupavam em acender o cigarro, chupar sorvete ou descascar tangerina, faziam-no com a outra mão (a esquerda).

Após longa espreita, no meio da rua a princípio, depois na calçada e afinal no limiar, ele subiu os degraus de madeira, enquanto se defendia de uma mulata gorda, que lhe enlaçou perdidamente o pescoço, mas como permanecesse, o pé no ar, vigiando impávido em frente, deixou-o seguir, não sem que ele notasse numa das coxas a tatuagem do coração azul e, dentro do coração, um nome que, por coincidência, era o seu próprio. Havia cinco senhoras no corredor, além da mulata, e as que se dispunham ao longo dos degraus abriam alas para as últimas, sentadas em cadeiras comuns, das quais (mulheres) uma — a derradeira e a que buscara com tanto afã, impaciência e uma ponta de desespero — instalara-se em cadeira antiga de vime, a única que poderia descansá-la, após tão implacável perseguição. Fitaram-no com sorrisos insinuantes, não ela, olhos tímidos sobre as mãos fatigadas. O rapaz estava de linho branco e gravata de bolinhas e, posto nem uma desconfiasse do seu negro coração, a velha — pois era uma velha — mantinha a cabeça baixa e, na postura indefesa e nostálgica, parecia capaz de chorar por ele que, vencido o quarto degrau, alcançou o corredor e até que enfim a cadeira. De pé a seu lado, notou que aparava furtiva com uma tesourinha a unha grossa do polegar, e com voz que não era a sua, de tão rouca:

— Você é toda minha, querida?

Enquanto as demais senhoras, nos degraus e nas cadeiras, eternamente a girar seus pêndulos, viravam-se para ele, admiradas da emoção que lhe gemia na voz — e deveras comovido porque ia finalmente ter a sua velha — a velha (que podia ser a mãe e a avó de todas e não se confundia com nem uma outra até você descobrir que simplesmente estava vestida) ergueu-se com dificuldade, apoiada nos braços da cadeira e, sem interesse ao menos de olhá-lo, enfiou pelo corredor escuro, indicando com voz cansada e displicente, de tantos anos esquecida na cadeira amarela de vime:

— Por aqui.

Desconsolada ou preguiçosa, seguiu à sua frente, estalando o chinelinho de pano. Ao passo que não sentira curiosidade pela nudez das outras, sugerida ou devassada por entre a calcinha e o porta-seio, tremia ao sonhar com as intimidades da velha, pois pensava nela como "A sua velha", merecida e enfim conquistada na mais feroz caça às velhinhas de Curitiba, a qual trajava — apesar do calor e do traje oficial de duas peças coloridas — vestido singelo de algodão, sem mangas e outrora encarnado. Arrastava os chinelos, com pés inchados de gordas veias azuis e, atrás dela, sem que pudesse adivinhar-lhe as formas, porque era antes mortalha o tal vestido vermelho, o rapaz enxugava o suor das mãos na expectativa do mistério daquele enterro ou procissão que, se bem não o merecesse, por certo lhe desvendaria graças aos inúmeros lustros de vivência. No fim do corredor em penumbra, que exalava forte à creolina, a velha abriu uma porta, os dois entraram.

O quarto era separado do corredor por um tabique pouco mais alto que as cabeças e mobiliado apenas de cama e mesa de cabeceira. Olhando a pobre cama coberta por uma colcha esverdinhada, estendida com desleixo ou às pressas, quem sabe usada havia pouco, o moço voltou-se para a companheira imóvel ao lado da porta aberta:

— A boneca? Onde está a boneca?

Era verdade, sentia a ausência da boneca de cachos, sentadinha na colcha purpurina e, encontrando os olhos ausentes ou distraídos da criatura, já se apressava a corrigir, enquanto reconhecia com espanto que não envelhecem os olhos — ao menos os azuis —, dirigindo-lhe o primeiro dos galanteies que se atropelavam nos lábios sôfregos:

— Ela é você, querida. É você a boneca.

Ela sorriu com a dentadura antiga, em que as gengivas eram de qualquer tonalidade menos de carne e os dentes alvares como dentes jamais usados. Despindo-se, eis que se persignava — "Deus louvado, tenho a minha velha, eu que não mereço a última das mulheres, nenhuma é suficientemente indigna para mim" —; enquanto ela, com a mão na bola da maçaneta, o que a fazia mais desejável, assim quisera fugir-lhe antes que a pudesse ter, espiava-o a despir-se com inesperada pressa, pendurando o paletó no prego que ela indicou atrás da porta, estendendo a calça e a camisa ao pé da cama. Já descartava o sapato, e somente então — ainda se recusando como se nunca fosse ganhá-la — a velha murmurou em voz baixa, onde percebeu acento estrangeiro:

— Já volto, nón?

Deixou de escutar os chinelos, estendeu-se apenas de meias na cama e, por maior que fosse o terror de percevejo, largou todo o peso sobre a colcha assinalada aqui e ali de manchas.

Estava em paz consigo, pensava que estava ou procurava fingir que estava, até que descobriu dois ou três orifícios no tabique por onde o olho que tudo vê, seja ou não olho de Deus, poderia espioná-lo e, cruzando as mãos na nuca, pois a cama não tinha travesseiro, observou a lâmpada que sobre a sua cabeça pendia de um fio pontilhado de moscas mortas. Depois de admirar a lâmpada enrolada em papel de seda escarlate e a parede manchada de goteiras, identificou atrás da porta o retrato colorido de Ramon Novarro(*), do qual desviou depressa os olhos, porque um dia — ai, que náusea lhe vinha daquele dia — quisera ser Ramon Novarro enquanto, lá do corredor, chegava o eco das carpideiras. Sem ouvi-las dialogar, distinguia as vozes apenas quando elevadas ao tom mais alto de sua monótona litania -— "Vem cá, amorzinho... vem cá, meu bem... vem cá, benzinho... ó você aí, ó zarolho, vem cá... ó belezinha, vem cá. . ."

Não tinha janela o quarto, de repente aflito. "Não é um quarto", pôs-se a repetir, "é a alcova da perdição". Gemia de impaciência com a demora da velha e, se não voltasse, temia pelo que pudesse acontecer. Já pensava em iniciar padre-nosso ou ave-maria quando ela entrou, desdenhosa de sua nudez e belezas que o próprio Ramon Novarro invejaria.

— Quer pagar, bem?

Fechou a porta apenas com a maçaneta, impassível ao lado da cama e, embora fosse uma súplica no ritual da paixão, não estendia sequer os dedos. Sem discutir o preço, ele apanhou do bolso da calça a maior nota:

— O troco é seu, querida.

Primeira vez ela sorriu e tudo nela era primeira vez. Segurou o dinheiro e o óculo na mão, enquanto se desfazia do vestido pela cabeça, a despentear o cabelo grisalho na testa e nas têmporas.

— Quer que tire?

Depois de arrumar o vestido ao pé da cama, indicou o porta-seio de algodão, sob o qual o rapaz podia adivinhar os seios pesados e murchos, quem sabe com cabelo no biquinho preto.

Resposta negativa, ela que conservava o dinheiro na mão, dobrou-o três vezes e o guardou no porta-seio. Ainda de pé, abriu-lhe os moles braços alvacentos de mãe d’água, nos quais surpreendeu o primeiro sinal de sedução: axila depilada, e pensou — "Sob a velha dorme a cortesã" que, com algum esforço, ajoelhou-se na cama e, ao tilintarem duas ou três medalhinhas no pescoço, atirou-as para as costas. Afastou-as simplesmente, não as atirou, pois tal verbo sugere ação de qualquer maneira apressada, a velha era lerda e trazia nos gestos graves o sossego adquirido na cadeira de vime e, enquanto isso, o rapaz percorria-lhe vagarosamente as costas lisinhas com os dedos de quem acaricia um bicho de estimação até que encontraram caroço ou verruga, começando então a descrever lentos círculos, que fugiam e voltavam sempre àquele duro nódulo, e ele se pôs a engolir em seco. Mão viscosa de suor, agarrou brutalmente a nuca da velha, que tinha os cabelos curtos e, atraindo-a para si, constatava a relutância dela ainda se negando ao seu feroz desejo. Girando de leve a cabeça para a mesa, onde havia um rolo de papel, quis estender a mão, porém o rapaz a impediu e, já de olho fechado, aproximava-lhe aos poucos a cabeça da sua, entre os protestos inúteis de — "Nón... nón... Na boca nón...", beijando-a enfim e, até no beijo, a velha resistia, sem descerrar os lábios frios e enrugados, presa a dentadura com a ponta da língua no céu da boca.

Compunha a dama as dobras da mortalha quando ele abriu os olhos em agonia, pois o amor não o esvaziara do desprezo de si mesmo. Ao erguer-se da cama, a colcha colada de suor nas costas e três vezes imundo, decidiu que não se lavaria, para conservar entre as mãos peganhentas o odor de carne mofada da velha que, com toda a febre da luxúria, não tinha uma gotícula no rosto. Nem um dos dois se penteou e, com a ponta dos dedos, um dos quais enfeitado por anel de falso rubi, alisando os cabelos brancos e alvoroçados na nuca, ela pediu:

— Tire o batón.

O rapaz não aceitou o retalho de papel e esfregou a boca no lenço:

— A mais doce lembrança!

Quedaram-se diante da porta e, primeira vez, ela o encarava:

— Volta, nón?

— Como é seu nome?

— Pergunta por Sofia.

Ele não pode abrir a porta, com a bola amarela a escorregar entre os dedos.

— Eu sabe o jeito, bem.

Desta vez o moço seguiu na frente. No umbral do corredor ensolarado, as mulheres estavam no mesmo lugar e a mulata chupando uma laranja e cuspindo as sementes, que bem podiam ser as da inveja, resmungou para os dois — "Eu, hein? Eu, hein?"

Em adeus à sua querida, beijou a mão gélida da velha. Desceu os degraus, atravessou a rua e piscando ao sol esperou na esquina. A casa tinha uma única janela e aguardou que a mão com o falso rubi acenasse por entre as palhetas verdes da veneziana, e tão-somente a mão, tinha vergonha dele ou por ele. "Posso ir para casa", pensou o moço, "abraçar minha mulher e beijar meus filhos. Agora eu me sinto bem".

Misturou-se com o povo que, ora diante das portas, ora de cabeça erguida para as janelas, adorava as imagens douradas nos seus nichos, dir-se-ia indiferentes à aflição dos homens, não fora o gesto de esperança com que todas balouçavam a mão direita, unindo em círculo perfeito o polegar e o indicador, no convite ao gozo da inocência perdida e recuperada, até que o rapaz de linho branco as deixou para trás, enquanto duas varejeiras lhe zumbiam em volta da cabeça e mais uma vez repetiu: "Tudo já passou. Não foi nada. Já passou. Agora estou bem".



(*) Ramón Novarro (Durango, 6 de fevereiro de 1899 — Los Angeles, 30 de outubro de 1968) foi um ator de cinema, teatro e televisão mexicano radicado nos Estados Unidos. Iniciou sua carreira em filmes mudos em 1917 e acabou se tornando uma das principais atrações de bilheteria de década de 1920 e início da década de 1930. Novarro foi divulgado pela MGM como um "amante latino" e ficou conhecido como um símbolo sexual após a morte de Rodolfo Valentino. (Nota do blog)



(Novelas nada exemplares, 1959)



(Ilustração: Hendrick Goltzius - Le jeune homme et la vieille)

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