quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A CIDADE DE MOSCOU DO DOUTOR JIVAGO, de Boris Pasternak


Iúri Andreevitch começou a colocar em ordem aquilo que criou, trechos de que lembrava e obras que Ievgraf conseguia e trazia para ele de algum lugar, parte em próprios manuscritos de Iúri Andreevitch, e parte impressos por estranhos. O caos do material obrigava Iúri Andreevitch a espalhar-se ainda mais do que a sua própria natureza já tendia a fazer. Logo largou este trabalho e da retomada do inacabado passou para a criação de algo novo, atraído pelos últimos esboços feitos.

Compunha em rascunho ensaios de artigos, do mesmo tipo das anotações superficiais que fez na primeira estada em Varikino, e anotava fragmentos de poemas que lhe ocorriam, inícios, fins e meios, misturados, sem distinção. Às vezes, mal conseguia dominar as ideias que lhe ocorriam, anotava as letras iniciais das palavras e abreviações por causa de sua escrita, que não acompanhava a impetuosa e rápida fluência de seus pensamentos.

Tinha pressa. Quando sua imaginação se cansava e o trabalho atrasava, ele apressava-o e estimulava-o fazendo desenhos nas margens das folhas. Neles retratava clareiras de florestas e cruzamentos urbanos com postes de anúncios no meio: "Moreau e Vettchinkin. Semeadores. Debulhadores".

Os artigos e os poemas tinham todos o mesmo tema: a cidade.

Posteriormente, entre seus papéis, encontraram a seguinte anotação:

"No ano de 1922, quando retornei a Moscou, encontrei-a despovoada e semidestruída. Assim ela saiu das provações dos primeiros anos da revolução, assim permanece até o dia de hoje. A população diminuiu, não se constroem prédios novos, os antigos não são conservados.

"Porém, mesmo neste estado, permanece uma cidade grande e moderna, a única inspiradora de uma arte verdadeiramente nova e moderna.

"A enumeração desordenada de objetos e conceitos, aparentemente incompatíveis e colocados lado a lado de forma espontânea, nos simbolistas Block, Verhaeren e Whitman, não é um capricho estilístico. É uma nova ordem de impressões, observada ao vivo e reproduzida no modelo.

"Da mesma forma como eles percorrem uma série de imagens, a rua urbana comercial do fim do século XIX passa navegando e faz correr diante de nós suas multidões e veículos e depois, no início dos próximos cem anos, passarão os vagões de seus bondes, de suas ferrovias elétricas e subterrâneas.

"Nessas condições, não há lugar para a simplicidade pastoral. A sua falsa naturalidade é um plágio literário, um maneirismo artificial, um fenômeno de ordem livresca, trazido não pela aldeia mas pelas prateleiras de bibliotecas dos depósitos de livros acadêmicos. A linguagem viva, que formou-se ao vivo e que corresponde naturalmente ao espírito do nosso dia, é a linguagem do urbanismo.

"Moro num cruzamento urbano movimentado. A Moscou de verão, cega pelo sol, o asfalto incandescente, o sol que joga reflexos nos vidros das janelas dos cômodos superiores, a respiração da floração das nuvens e dos bulevares gira em torno de mim e me vira a cabeça e quer que eu, em sua homenagem, vire a cabeça dos outros. Com este objetivo, a cidade educou-me e entregou-me nas mãos da arte.

"De dia e de noite, a rua constantemente barulhenta atrás da janela, da mesma forma densa, está estreitamente ligada ao espírito moderno, assim como a abertura musical e os panos teatrais ainda descidos e repletos de escuridão e mistério, mas já pelas luzes vermelhas acesas da ribalta. Incessante e ininterruptamente, a cidade que se move e rumoreja atrás das portas e das janelas é uma infinita e imensa introdução à vida de cada um de nós. Exatamente com estes traços eu gostaria de escrever sobre a cidade."

No caderno de poemas de Jivago, que fora conservado após sua morte, não se encontram tais versos. Talvez o poema Hamlet pertencesse a esta categoria?

 

(Doutor Jivago - título original em russo: Doktor Zivago; tradução de Zoia Prestes; prefácio e tradução de poemas: Marco Lucchesi)

 

(Ilustração: museu artes xfig Leonid Afremov - Old Moscow.jpg)





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