quarta-feira, 15 de julho de 2009

AQUELA NOITE MÁGICA DA BAHIA, de Jorge Amado









Pelo jeito, aquela ia ser noite memorável, inesquecível: Quincas Berro Dágua estava num dos seus melhores dias. Um entusiasmo incomum apossara-se da turma, sentiam-se donos daquela noite fantástica, quando a Lua cheia envolvia o mistério da cidade da Bahia. Na Ladeira do Pelourinho, casais escondiam-se nos portais centenários, gatos miavam nos telhados, violões gemiam serenatas. Era uma noite de encantamento, toques de atabaques ressoavam longe, o Pelourinho parecia um cenário fantasmagórico.

Quincas Berro Dágua, divertidíssimo, tentava passar rasteiras no Cabo e no Negro, estendia a língua para os transeuntes, enfiou a cabeça por uma porta para espiar, malicioso, um casal de namorados, pretendia, a cada passo, estirar-se na rua. A pressa abandonara os cinco amigos, era como se o tempo lhes pertencesse por inteiro, como se estivessem mais além do calendário, e aquela noite mágica da Bahia devesse prolongar-se pelo menos por uma semana. Porque, segundo afirmava Negro Pastinha aniversário de Quincas Berro Dágua não podia ser comemorado no curto prazo de algumas horas. Não negou Quincas que fosse seu aniversário, apesar de não recordarem os outros havê-lo comemorado em anos anteriores. Comemoravam, isso sim, os múltiplos noivados de Curió, os aniversários de Maria Calar, de Quitéria e, certa vez, a descoberta científica realizada por um dos fregueses de Pé-de-Vento. Na alegria da façanha, o cientista soltara na mão do seu “humilde colaborador” uma pelega de quinhos. Aniversário de Quincas, era a primeira vez que o festejavam, deviam fazê-lo convenientemente. Iam pela Ladeira do Pelourinho, em busca da casa de Quitéria.

Estranho: não havia a habitual barulheira dos botequins e casas de mulheres de São Miguel. Tudo naquela noite era diferente. Teria havido uma batida inesperada da polícia, fechando os castelos, clausurando os bares? Teriam os investigadores levado Quitéria, Carmela, Doralice, Ernestina, a gorda Margarida? Não iriam eles cair numa cilada? Cabo Martim assumiu o comando das operações, Curió foi dar uma espiada.

- Vai de batedor – esclareceu o Cabo.

Sentaram-se nos degraus da Igreja do Largo, enquanto esperavam. Havia uma garrafa por acabar. Quincas deitou-se, olhava o céu, sorria sob o luar.

Curió voltou acompanhado por um grupo ruidoso, a dar vias e hurras. Reconhecia-se facilmente, à frente do grupo, a figura majestosa de Quitéria do Olho Arregalado, toda de negro, mantilha na cabeça, inconsolável viúva, sustentada por duas mulheres.

- Cadê ele? Cadê ele? – gritava, exaltada.

Curió apressou-se, trepou nos degraus da escadaria, parecia um orador de comício com seu fraque ruçado, explicando:


- Tinha corrido a notícia de que Berro Dágua bateu as botas, tava tudo de luto. – Quincas e os amigos riram. – Ele tá aqui, minha gente, é dia do aniversário dele, tamos festejando, vai ter peixada no saveiro de Mestre Manuel.


Quitéria do Olho Arregalado libertou-se dos braços solidários de Doralice e da gorda Margô, tentava precipitar-se em direção a Quincas, agora sentado junto ao Negro Pastinha, num degrau da Igreja. Mas, devido, sem dúvida, à emoção daquele momento supremo, Quitéria desequilibrou-se e caiu de bunda nas pedras. Logo a levantaram e ajudaram-na a aproximar-se:

- Bandido! Cachorro! Desgraçado! Que é que tu fez pra espalhar que tava morto, dando susto na gente?

Sentava-se ao lado de Quincas sorridente, tomava-lhe a mão, colocando-a sobre o seio pujante para que ele sentisse o palpitar do seu coração aflito:

- Quase morri com a notícia e tu na farra, desgraçado. Quem pode com tu, Berrito, diabo de homem cheio de invenção? Tu não tem jeito, tu não tem jeito, Berrito, tu ia me matando...

O grupo comentava entre risos; nos botequins a barulheira recomeçava, a vida voltara à Ladeira de São Miguel. Foram andando para a casa de Quitéria. Ela estava formosa, assim de negro vestida, jamais tantos a haviam desejado.




(A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua)



(Ilustração: Carybé)






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