quarta-feira, 22 de julho de 2009
E QUE PENSAR EU MESMO DE MIM?, de Carlos Heitor Cony
No dia seguinte, mal acabado o café, quando dei por mim já estava em cima do muro, pulando para a casa do capitão.
A mulher me esperava de combinação, uma combinação de seda azul, transparente à claridade do dia. Foi ela quem tomou a iniciativa. Abraçou-me com fogo, tomou minhas mãos e guiou-as pelas suas carnes brancas, através da curva macia de seu ventre, até que senti, meio repugnado, a seda de seus pelos.
Ela notou a repugnância que não pude esconder e pareceu ofender-se.
Entramos para o quarto. Pelo caminho esbarrei com duas botas de cavalariano que haviam chegado do engraxate, cheirando a graxa e a morrinha de cavalo.
A mulher deitou-se na cama sem tirar a combinação. Atraiu-me a si, esquecida já de seu amuamento anterior. Eu relutei em deitar a seu lado, estava calado, não pronunciara uma só palavra ainda, intrigado comigo mesmo em como fora possível estar outra vez ali, prestes a ser devorado, após ter feito os mais solenes juramentos de nunca mais pular o muro nem mais rever a mulher.
Ela estranhou a indecisão:
- Você quer ou não quer?
Eu continuava calado, a olhá-la, com um pouco de espanto.
- Bolas – disse ela. – Rapazes melhores não me faltam. Você é feio, narigudo, ossudo demais, sem poesia. Agradou-me da outra vez... mas isso são questões pessoais... Que há agora? Não me acha desejável?
- Acho – respondi.
Ela tirou a combinação e ficou nua, e se ofereceu ao meu exame. Era muito bonita. Tinha sexo em todo o corpo. Parecia não ter outra coisa a não ser sexo. Seus cabelos, seus olhos, suas narinas, suas coxas, seus braços, tudo era prolongamento daquele sexo medonho que a devorava por baixo.
Eu continuava vestido. Ela me disse que da primeira vez resolvera me despir a fim de quebrar o meu constrangimento de rapaz virgem, marinheiro de primeira viagem. Não ia fazer o mesmo agora. Eu que tratasse de me despir e de a possuir, se quisesse.
Permaneci em pé, olhando aquele corpo cheio de abismos, mas sem desejo, sem amor, sem nada. Súbito, caí sobre ela, chorando, impotente:
- Não! Hoje não! Não posso!
- Não pode o quê?
- Não posso! Você não me entende!
- Causo-lhe repugnância?
- Não.
- Acha-me vagabunda?
- Não! Pelo amor de Deus, não!
- Sou muito velha para você?
- Não adianta! Você não entenderá!
Ela se levantou, vestiu a combinação.
- Acho melhor você ir chamar outro.
Eu continuei deitado. Detestava-me profundamente por aquele papel ridículo e tolo. Que não pensaria ela de mim? E que pensar eu mesmo de mim?
Depois de um certo tempo em que me considerou atentamente, ela teve pena de mim. Deitou-se novamente ao meu lado, alisou carinhosamente os meus cabelos.
- Algum amor, meu filho? Às vezes um rapaz diante das outras...
- Não amo ninguém!
Ela ia dar o meu caso como perdido, quando, de repente, apertei-a pela cintura e subjuguei-a. Arranquei-lhe a combinação com raiva. Seus seios surgiram, túmidos, com uma ligeira tremura de excitação. Enfiei minha cabeça entre eles e chorei, desatei a chorar vergonhosamente.
Aos poucos fui sentindo um secreto prazer em enxovalhar com minhas lágrimas aquele recanto interior de mulher. Molhei-o de lágrimas. E quando beijei seus ombros, eles estavam salgados pelas minhas lágrimas. Quase nunca chorara na vida, e, que me lembra, nunca em presença de estranhos. Mas naquele instante rompi todos os meus diques interiores e a enxurrada desceu, sem desespero, sem ódio, com um pouco de prazer.
A mulher foi boa. Percebeu que eu vivia alguma coisa que eu mesmo não saberia explicar ou definir, que talvez nem mesmo entendesse. Foi carinhosa, abafou os soluços que me saíam da garganta, tapou depois a minha boca com um dos seios e ficou a alisar os meus cabelos. Terminou gozando, sei lá como, um espasmo que ela mesma classificou como o mais doce de toda a sua vida de mulher acanalhada por homens apenas bestiais.
Naquele dia não me atrasei na formatura. E em lugar da apreensão e da angústia anterior, uma sensação de bem estar físico e espiritual caiu como um bálsamo sobre o meu coração e sobre meus olhos, queimados ambos pelas próprias incompreensões.
À noite, antes dormir, pensei em Helena. Apesar de sua sensualidade nascente, da sua promissora beleza, como estava longe da realidade daquela mulher.
Coisa curiosa, passei a pensar em Helena em termos precisos, exatos, sem exaltações. Antes, Helena era um complexo de inocência e pecado, de alma e carne, de vício e virtude, de luz e sombra, um enigma diante da minha vida e do meu sexo. Agora, cada coisa adquiria seu lugar exato, tudo tomava sentido.
Helena ainda era Helena. Seria sempre Helena. Eu é que mudara. Helena me marcara. Agora, eu continuava marcado e tinha um certo prazer em estar marcado. Por Helena.
Talvez estivesse errado. Mais tarde, quem sabe, atribuísse aquele incidente a outros motivos mais reais ou mais próximos da realidade. Naquele momento, porém, eu tinha a certeza de que sobre aquele corpo, sobre aquela carne branca de mulher, eu chorara, inteira, toda a minha angústia por tudo aquilo que eu não entendia dentro de mim e fora. Que eu sofria sem entender. E que sem entender, pouco a pouco, parecia que já começava a amar.
(O Ventre)
(Ilustração: Aaron Coberly)
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