quinta-feira, 30 de julho de 2009
O INVERSO AFASTAMENTO, de João Guimarães Rosa
Outra era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade. Vinha, porém, só com o Tio, e era uma íngreme partida. Entrara aturdido no avião, a esmo tropeçante, enrolava-o de por dentro um estufo como cansaço; fingia apenas que sorria, quando lhe falavam. Sabia que a Mãe estava doente. Por isso o mandavam para fora, decerto por demorados dias, decerto porque era preciso. Por isso tinham querido que trouxesse os brinquedos, a Tia entregando ainda em mão o preferido, que era o de dar sorte: um bonequinho macaquinho, de calças pardas e chapéu vermelho, alta pluma. O qual, o prévio lugar dele sendo na mesinha, em seu quarto. Pudesse se mexer e viver de gente, e havia de ser o mais impagável e arteiro deste mundo. O Menino cobrava maior medo, à medida que os outros mais bondosos para com ele se mostravam. Se o Tio, gracejando, animava-o a espiar na janelinha ou escolher as revistas, sabia que o Tio não estava de todo sincero. Outros sustos levava. Se encarasse pensamento na lembrança da Mãe, ia chorar. A Mãe e o sofrimento não cabiam de uma vez no espaço de instante, formavam avesso – do horrível do impossível. Nem ele isso entendia, tudo se transtornando então em sua cabecinha. Era assim: alguma coisa, maior que todas, podia, ia acontecer?
Nem valia espiar, correndo em direções contrárias, as nuvens superpostas, de longe ir. Também, todos, até o piloto, não eram tristes, em seus modos, só de mentira no normal alegrados? O Tio, com uma gravata verde, nela estava limpando os óculos, decerto não havia de ter posto a gravata tão bonita, se à Mãe o perigo ameaçasse. Mas o Menino concebia um remorso, de ter no bolso o bonequinho macaquinho, engraçado e sem mudar, só de brinquedo, e com a alta plumagem no chapeuzinho encarnado. Devia jogar fora? Não, o macaquinho de calças pardas se dava de também miúdo companheiro, de não merecer maltratos. Desprendeu somente o chapeuzinho com a pluma, este, sim, jogou, agora não havia mais. E o Menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de si. Estava muito para trás. Ele, o pobrezinho sentado.
O quanto queria dormir. A gente devia poder parar de estar tão acordado, quando precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não dava conta. Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que ensaiam esculturas efêmeras. O Tio olhava no relógio. Então, quando chegavam? Tudo era, todo-o-tempo, mais ou menos igual, as coisas ou outras. A gente, não. A vida não parava nunca, para a gente poder viver direito, concertado? Até o macaquinho sem chapéu iria conhecer do mesmo jeito o tamanho daquelas árvores, da mata, pegadas ao terreiro da casa. O pobre do macaquinho, tão pequeno, tão sem mãe; pegava nele, no bolso, parecia que o macaquinho agradecia, e, lá dentro, no escuro, chorava.
Mas, a Mãe, sendo só a alegria de momentos. Soubesse que um dia a Mãe tinha de adoecer, então teria ficado sempre junto dela, espiando para ela, com força, sabendo muito que estava e que espiava com tanta força, ah. Nem teria brincado, nunca, nem outra coisa nenhuma, senão ficar perto, de não se separar nem para um fôlego, sem carecer de que acontecesse o nada. Do jeito feito agora, no coração do pensamento. Como sentia: com ela, mais, do que se estivessem juntos, mesmo, de verdade.
O avião não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava o voo-que parecia estar parado. Nas no ar passavam peixes negros, decerto para lá daquelas nuvens: lombos e garras. O Menino sofria sofreado. O avião então estivesse parado voando-e voltando para trás, mais, e ele junto com a Mãe, do modo que nem soubera, antes, que o assim era possível.
(Primeiras Estórias)
(Ilustração: Jean Bailly)
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