domingo, 19 de julho de 2009

A MORTE DE NARCISO, de Ovídio









Fonte sem limo, pura prata em ondas límpidas,
jorrava. Nem pastor se achega, nem pastando
seu rebanho montês, ou gado avulso, acode.
Nem pássaro, nem fera, nem, tombando, um ramo
perturba a úmida grama que o frescor irriga.
O bosque impede o sol de aquentar este sítio.
Da caça e do calor exausto, aqui vem dar
Narciso, seduzido pela fonte amena.
Se inclina, vai beber, outra sede o toma:
enquanto bebe o embebe a forma do que vê.
Ama a sombra sem corpo, a imagem, quase-corpo.
Se embevece de si, e no êxtase pasmo,
é um signo marmóreo, uma estátua de Paros.
De bruços, vê dois sóis, astros gêmeos, seus olhos
Contempla seus cabelos dignos de Apolo
ou de Baco; suas faces, seu pescoço branco,
a elegância da boca; a tez, neve e rubor.
No mirar-se, admira o que nele admiram.
Deseja-se a si próprio, a si mesmo se louva,
súplice e suplicado, ateia o fogo e arde.
Quantos beijos vazios deu na mentira d’água!
Quantas vezes tentou captar o simulacro
e mergulhou os braços abraçando o nada!
Não sabe o que está vendo, mas no ver se abrasa:
o que ilude seus olhos mais o açula ao erro.
- Crédulo buscador de um fantasma fugaz!
O que buscas não há: se te afastas, desfaz-se.
Esta imagem que colhes é um reflexo: foge,
não subsiste em si mesma. Vem contigo. Fica
se estás. Se partes - caso o possas - ela esvai-se.
Nem Ceres - alimento, nem o sono - paz,
nada o tira de lá. Prostrado em relva opaca
contempla as falsas formas sem saciar os olhos.
Por seu olhar se perde. Meio-erguido, os braços
aos bosques circunstantes agitando, indaga:
“Houve, bosques, como este, outro amor tão cruel?
Sabeis. Destes refúgio a muitos que sofriam
de amor. Houve outro em tantos séculos de vida
- vossa memória é longa - que como eu penasse?
Vejo o que amo, mas o que amo e vejo, nunca
posso tomá-lo, e em tanto erro insisto amando.
O que mais dói porém: não nos separa um mar,
montes, caminho longo, sólidas muralhas.
Água exígua nos tolhe. O outro também aspira
a mim: sempre que beijo a amada face líquida,
seus lábios refletidos tendem para os meus.
É como se o tocasse: nos impede um mínimo.
Sai fora dessa fonte! Vem! Por que me iludes,
evasivo menino? em formas ou idade,
nada em mim pode haver que te repugne. Ninfas
me amaram! No teu rosto leio bons prenúncios:
quando te estendo os braços, braços me distendes:
se rio, sorris; lágrimas respondem lágrimas,
se choro; a meu aceno, acena tua cabeça.
Adivinho palavras em tua linda boca,
móveis palavras, que ao ouvido não me chegam.
Sou eu este outro! Não me ilude a imagem fútil.
Queimo no amor de mim, no incêndio que me ateio.
Que hei de fazer? Rogando, sou rogado. A quem
e como suplicar? A mim cobiço e tenho:
pobre e rico de mim. Quero evadir meu corpo,
desejo estranho num amante! Separar-se
daquilo mesmo que ama. Agora a dor me vence.
Exaurido de amor, expiro em minha aurora.
A morte não me pesa, alivia-me as penas.
Quisera perdurar naquele a quem adoro:
ambos, num só concordes, morreremos juntos.”
Diz, e volta abismado a contemplar o espelho
d’água, e o turva de lágrimas, e a imagem vã
em círculos dissipa-se. Ao vê-la que foge,
exclama: “Fica! Não me destituas, má
visão, cruel fantasma em que me nutro e onde,
intocado de mim, deliro de paixão!”
Rasga, doido de dor, as vestes em pedaços
e pune o peito nu com seus dedos de mármore.
Ferido, o peito vai-se tingindo de rubro,
como um fruto que em parte se oferece branco
e em parte enrubesce; ou as uvas num cacho,
imaturas, aos poucos se fazendo púrpura.
Quando - igual - se revê na onda liquefeita,
não mais suporta. Como a cera loura funde
ao fogo leve e a fria geada matutina
desfaz-se ao sol, assim Narciso, pouco a pouco,
pela chama de amor se fina e se consome.
Sua tez não mais figura neve enrubescida,
nem força, nem vigor, tudo o que à vista agrada,
nada resta em seu corpo, outrora amado de Eco,
a ninfa, que ao fitá-lo se condói, ferida
embora pelo seu desprezo. A ninfa chora
e “Ai!” lhe responde aos “ais”, duplica seus lamentos.
Toda vez que ele fere os braços, repercute
o som dos golpes Eco. Às águas familiares
voltando o olhar, Narciso diz com voz extrema:
“Fugaz menino amado! Ai!” E o sítio em torno
lhe repete as palavras. Diz: “Adeus!” e “Adeus!”
retorna a ninfa. Então no verde pousa a fronte.
A noite lhe clausura os olhos, luz que se ama.
Recebido no Inferno, assim mesmo esses olhos
se deleitam, mirando-se no Estígio. Choram
As Náiades o irmão, em tributo cortando
os cabelos. As Dríades deploram. Eco
ressoa o pranto. As tochas fúnebres se agitam,
mas o corpo não há. Em seu lugar floresce
um olho de topázio entre pétalas brancas.



(Transcrição de Haroldo de Campos - F.S.P. - 21.8.94)


(Ilustração; Nicolas Poussin - echo and narcissus-1630)




2 comentários:

  1. que felicidade encontrar o poema inteiro, aqui.

    mas queria encontrá-lo impresso, você tirou de alguma coletânea?

    não consegui descobrir isso.

    Boa noite fria,
    Flora.

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  2. Esse poema foi copiado por mim da Folha de São Paulo de 21.8.94.

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