sexta-feira, 2 de outubro de 2009

SOLIDÃO EM STARFISH BEACH, de Philip Roth









Era terrível passar o tempo sem pintar. De manhã dava sua caminhada de uma hora, no final da tarde ficava vinte minutos se exercitando com pesos leves e meia hora nadando sem se esforçar demais na piscina – era esse o regime diário prescrito pelo seu cardiologista –, mas era só isso, eram esses os únicos acontecimentos de seu dia. Quanto tempo uma pessoa pode passar olhando para o mar, mesmo sendo o mar que ela ama dede criança? Quando tempo ela pode ficar vendo a maré subir e descer sem se lembrar, como se lembraria qualquer um num devaneio à beira mar, que a vida fora dada a ele , como a todos, de modo aleatório e fortuito, e apenas uma vez, sem nenhum motivo conhecido ou possível de ser conhecido? À noitinha, ele pegava o carro e ia comer enchova na brasa no deque de fundos da peixaria, que dava para a enseada de onde os barcos partiam para o mar, passando por baixo da velha ponte levadiça; e às vezes parava antes na cidadezinha onde sua família costumava passar as férias de verão. Ele saltava do carro, na estrada à beira mar, ia até o deque e sentava-se nos bancos voltados para a praia e o mar, o mar estupendo que estava constantemente mudando sem jamais mudar, desde o tempo em que ele era um menino ossudo que enfrentava as ondas. Era exatamente naquele banco que seus pais e avós se sentavam ao cair da tarde para pegar a brisa e ver os vizinhos e amigos passando, e era naquela exata praia que sua família fazia piqueniques e pegava sol, e ele, Howie e seus amigos nadavam, embora agora a faixa de areia fosse duas vezes mais larga do que antes, devido a um projeto de engenharia realizado pelo Exército. No entanto, mesmo larga daquele jeito, continuava sendo a sua praia, o centro dos círculos em que sua mente dava voltas quando ele relembrava os melhores momentos da meninice. Mas quanto tempo um homem pode ficar relembrando os melhores momentos da meninice? Por que não desfrutar os melhores momentos da velhice? Ou seria o melhor da velhice justamente isto – relembrar com saudade o melhor da meninice, aquele rebento tubular que era seu corpo, que acompanhava as ondas desde lá longe, onde elas começavam a se formar, vinha carregado por elas com os braços voltados para a frente, como se fossem a ponta de uma seta e o resto do corpo magricela vindo atrás fosse a haste da seta, até o momento em que seu peito roçava contra as pedras e conchas ásperas do fundo, e ele se punha em pé e mais que depressa dava meia volta e seguia em direção ao fundo até que a água estivesse à altura de seus joelhos, funda o bastante para ele mergulhar e começar a nadar loucamente em direção ao fundo, até o ponto em que as ondas se formavam – penetrando o Atlântico verde, que avançava inexorável como a realidade obstinada do futuro – e, quando tinha sorte, chegava lá no momento exato para pegar a próxima onde grande, e depois a próxima, e a próxima, e a próxima, até que, quando o sol ficava tão baixo que seus raios já roçavam a superfície do mar, ele percebia que era hora de voltar. Corria para casa descalço, molhado, salgado, relembrando a potência daquele mar imenso a ferver em seus ouvidos e lambendo o antebraço para sentir o gosto da pele recém-saída do oceano, tostada pelo sol. Juntamente com o êxtase de passar todo o dia sendo socado pelo mar até ficar tonto, aquele gosto e aquele cheiro o inebriavam de tal modo que por um triz ele não cravava os dentes na sua carne para arrancar um pedaço e saborear sua própria existência carnal.


O mais rápido que podia, cruzava as calçadas de concreto ainda quentes e, quando chegava à pensão, ia para os fundos, entrando no chuveiro ao ar livre com paredes encharcadas de madeira compensada, onde a areia molhada caía em chumaços de seu calção quando ele o tirava, puxando-o para baixo, e depois o colocava sob o fluxo da água gelada que batia em sua cabeça. A força constante da maré, a tortura da calçada ardente, o choque revigorante da chuveirada gelada, a felicidade daqueles músculos novos e tensos, dos membros esguios, da carne bronzeada de sol, marcada por uma única cicatriz clara, da operação de hérnia, escondida junto à virilha – não havia nada naqueles dias de agosto, depois que os submarinos alemães foram destruídos e não era mais necessário preocupar-se com a presença de marinheiros afogados, que não fosse maravilhosamente límpido. E não havia nada em sua perfeição física que lhe desse motivo para não julgá-la inviolável.



Quando voltava do jantar, tentava ler. Tinha uma biblioteca de livros de arte grandes que enchia uma das paredes do estúdio; passara toda a vida acumulando e estudando aqueles livros, mas agora não conseguia ficar sentado na sua cadeira de leitura e virar as páginas de um único volume sem se sentir ridículo. A ilusão – pois era assim que encarava a coisa agora – perdera seu poder sobre ele, e assim os livros tinham apenas o efeito de ampliar a sensação de que era um amador ridiculamente pretensioso, correndo atrás da meta inalcançável a que ele dedicara seus anos de aposentadoria.



Passar um tempo um pouco mais prolongado em companhia dos moradores de Starfish Beach também era insuportável. Ao contrário dele, muitos não apenas conseguiam travar conversas inteiras em torno dos netos, como também achavam que a existência desses netos era uma justificativa suficiente para sua existência. Quando se via preso na companhia deles, às vezes tinha a impressão de sentir a solidão em sua forma mais pura. E mesmo com os moradores que eram pessoas mais reflexivas, que sabiam falar, ele só gostava de ter contatos eventuais. Em sua maioria, os moradores idosos da cidadezinha estavam casados havia décadas, e ainda tinham vínculos tão fortes com o que restava da sua felicidade matrimonial que era raro ele poder convencer o marido a ir almoçar com ele sem a esposa. Ainda que sentisse um anseio melancólico ao contemplar esses casais à hora do crepúsculo ou nas tardes de domingo, bastava pensar no resto das horas da semana para que compreendesse que a vida desses casais não era para ele, quando então se sentia no auge da melancolia. A conclusão a que chegava é que não tinha nada que ter se mudado para uma comunidade de aposentados. Havia cortado suas raízes justamente no momento em que a idade exigia que ele estivesse tão arraigado quanto no tempo em que dirigia o departamento de criação publicitária. Ele sempre se sentia revigorado pela estabilidade, nunca pela imobilidade. E sua vida atual era pura estagnação. Agora lhe faltavam todas as formas de alívio, vivia uma esterilidade disfarçada de consolo, e não era possível voltar atrás. Uma sensação de alteridade o dominava – “alteridade”, uma palavra de sua linguagem particular que se referia a um estado de ser que lhe era quase inteiramente desconhecido até que sua aluna de pintura Millicent Kramer a usara, de modo desconcertante, para se queixar de sua condição física. Agora nada mais despertava sua curiosidade nem satisfazia suas necessidades – nem a pintura, nem a família, nem os vizinhos, nada, só as jovens que passavam por ele correndo no deque de manhã. Meu Deus, pensava ele, o homem que fui! A vida que me cercava! A força que eu tinha! Não havia “alteridade” em lugar algum! Era uma vez o tempo em que eu era um ser humano completo.




(Homem Comum, tradução de Paulo Henriques Britto)




(Ilustração: John Constable)





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