sábado, 31 de outubro de 2009
O AMIGO DO ZÉ DAS MOÇAS, de José Carlos Sibila Barbosa
Eu não podia dizer que era o meu amigo Zé das Moças quem eu estava vendo ali. Mas que era ele, ah isso lá era. Mas que eu podia dizer que era ele, ah isso lá eu não podia.
Fiquei na dúvida. Se eu digo que era, a cidade inteira vai dizer que eu estou ficando louco, porque eu não posso ter visto que não pode ser visto. Se eu digo que não era, quem vai achar que eu estou ficando louco sou eu mesmo, pois tenho certeza que eu vi que não pode ser visto.
O fantasma, que quando vivo era conhecido por Zé das Moças e era tido como o biruta do lugarejo, conversou comigo e até me falou do seu maior amigo, um canivete que um dia ele ganhou da mulher mais bela do mundo. E o seu mundo era apenas aquele lugar onde nasceu, cresceu, endoidou e morreu.
Nem um único pé para fora dos limites do local o Zé das Moças jamais andou. O que esse defunto biruta me falou, vou deixar para ele mesmo contar, pois, se eu mesmo conto, vão dizer que o biruta sou eu. Na verdade o que eu queria saber do morto que não posso dizer que vi, mas não posso negar ter visto, eu fui logo perguntando.
- Ô Zé, porque em vida você nunca largou o seu canivete amigo?
A resposta me causou mais espanto que a visão do morto, pois que era pura poesia. Poesia que ele não tinha na palavra da vida, mas tinha na vida do morto:
- Este é o meu amigo mais útil – falou-me o fantasma, abrindo as muitas lâminas do seu amigo canivete – Com ele eu divido minhas angústias, vivo momentos de paz... É o companheiro da minha solidão... Um amigo útil... Na verdade a minha primeira intenção foi de explorar esse meu amigão. Então era ele quem dava as primeiras lambidas na laranja azeda à beira do caminho. Frente ao aço duro da tampa da cerveja gelada, era ele que se esforçava no trabalho de liberar o loiro líquido da minha paixão. E se a cana se anunciava bruta, seu Chico, são os seus dentes e não os meus que mais do que depressa a executam... Ah! E se mais valia esse canivete não tem, ainda lhe sobra aquela que vale mais vintém, pois quando eu vejo a bela donzela, é ele que desinibe a minha timidez ao oferecer à cortejada os serviços afiados da tesoura de unhas... Ah! Como era útil esse meu grande amigo... Ele continua funcionando e bem, mas agora não é mais um amigo útil. É apenas amigo.
Dito isso o Zé das Moças desapareceu. Não o vi mais. Nem ele, nem o seu canivete.
Mas se contar esse estranho encontro não posso, e negar que vi seria uma mentira, vou pelo menos imitar o Zé e comprar também um canivete e contarei tudo para ele, chupando laranja azeda à beira do caminho, tomando uma geladinha ou mordendo uma cana. Quem sabe assim eu também encontre a minha donzela para contar minhas estórias.
(Criaturas)
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