terça-feira, 6 de outubro de 2009

LIVROS NUNCA FORAM INOCENTES, de Carlos María Domínguez







Ao longo dos anos, vi livros destinados a equilibrar a perna manca de uma mesa; conheci-os transformados em mesa de cabeceira, dispostos em forma de torre e com um pano por cima; muitos dicionários aplainaram e prensaram mais objetos do que as oportunidades em que foram abertos, e não poucos livros guardam, dissimulados em suas prateleiras, cartas, dinheiro, segredos. As pessoas também mudam o destino dos livros.

Um vaso se parte, uma cafeteira ou uma televisão se quebra muito antes do que um livro. Ele não se estraga a menos que seu proprietário queira fazê-lo, arranque suas páginas, ateie fogo nelas. Durante os anos da última ditadura militar argentina, muita gente queimou seus livros no bidê, nas banheiras, enterrou coleções no fundo de suas casas. Haviam-se tornado notoriamente perigosos. Entre eles e a própria vida, as pessoas escolhiam, transformadas em seu próprio verdugo.

Livros que haviam sido longamente estudados, discutidos, livros que tinham despertado paixões, compromissos irrenunciáveis, e distanciado velhos amigos, subiam ao céu transformados em cinzas de carvão que se dissipavam no ar.

Eu não me atrevi. Enrolava revistas e as introduzia dentro do tubo da cortina do chuveiro, escondia os livros mais temíveis no último canto dos armários, na fileira posterior da estante, com a consciência de que uma inesperada batida os descobriria. Naquela época os livros acusaram muita gente. Arruinaram-lhe vida.

As relações da humanidade com esses objetos resistentes, capazes de atravessar um século, dois, vinte, vencer, se se quiser, a areia do tempo, nunca foram inocentes. Aderiram à fibra da madeira, macia e inquebrantável, uma vocação humana.

Não é que seja afeito a olhar debaixo das cadeiras. Gosto de deixar-me enganar pelos saltimbancos, os efeitos rústicos do teatro e a melodia impressa nas palavras. Mas a casa de papel, numa praia distante do sul, acabou por tornar-me sensível a essa linha de sombra: uma dimensão cega que reúne num estranho brinquedo a vontade e o corpo da letra impressa.



(A Casa de Papel, tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro)


(Ilustração: Paul Cadmus)


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