quinta-feira, 8 de outubro de 2009

PREFÁCIO A “FILIBERTO FORRADO DE CRIANÇA”, de Witold Gombrowicz







E de novo um prefácio... estou aprisionado a um prefácio, não posso viver sem um prefácio e preciso fazer um prefácio, pois a lei da simetria exige que ao “Filidor forrado de criança” corresponda “Filiberto forrado de criança” e que o prefácio de “Filidor forrado de criança” seja complementado por um prefácio de “Filiberto forrado de criança”. Mesmo que quisesse, não poderia, e não posso, não posso, não posso escapar às férreas leis da simetria e da analogia. Mas está mais do que na hora de interromper, parar, sair da tenra imaturidade, ainda que apenas por um momento, e olhar conscientemente debaixo do peso de bilhões de brotos, botões, folhinhas, para que não se diga que enlouqueci, bla, bla, bla, de uma vez por todas. E, antes de seguir adiante neste caminho de supra-humanos horrores intermediários e inferiores, tenho que esclarecer, racionalizar, justificar, explicar e ordenar, extrair o pensamento primordial do qual derivam todos os demais pensamentos expostos neste livro, e revelar o sofrimento primitivo, origem de todas as dores aqui expostas e detalhadas. E tenho que introduzir uma hierarquia de sofrimentos, assim como uma hierarquia de pensamentos, bem como comentar a obra de forma analítica, sintética e filosófica,para que o leitor possa saber onde está a cabeça, onde estão as pernas, o nariz, o calcanhar, para que não se diga que não tenho consciência dos meus próprios fins e que, em vez de caminhar em linha reta e rigidamente como os maiores escritores de todos os tempos, fico correndo absurdamente em volta do próprio calcanhar. Mas qual seria o sofrimento principal e fundamental? Onde está o tormento primordial deste livro? Onde estás, oh, mãe de todos os sofrimentos? Quanto mais analiso, estudo, exploro e digiro, com mais clareza vejo que, na realidade, o principal e fundamental sofrimento – pelo menos, é o que penso – é, simplesmente, a angústia da má forma, do mau exterieur. Permitam que eu me exprima de outro modo: através do tormento da platitude, da careta, da fuça. Sim, eis a fonte, o manancial, a origem de tudo, de onde emanam harmonicamente, e sem exceção, todas as demais angústias, loucuras e aflições. Talvez fosse mais adequado afirmar que o sofrimento principal e básico nada mais é do que a dor nascida da limitação de um homem em relação a outro homem, do fato de nos sentirmos asfixiados pelo limitado, estreito e rígido conceito que as demais pessoas têm de nós. Ou, talvez, na base da obra esteja o maior e o mais mortífero tormento


do sobre-humano verdor dos brotos, das folhinhas e dos botões

ou a tortura do desenvolvimento e do subdesenvolvimento
ou, talvez, o sofrimento da forma não formada
ou o pesar pela formação do nosso próprio “eu” por outras pessoas
o sofrimento causado por violações, tanto físicas quanto psíquicas
a tortura das dinamizadas tensões interpessoais
a oblíqua e não claramente definida dor do desvio psíquico
a ansiedade marginal da ruptura, quebra ou deformação psíquica
a incessante dor da traição e da falsidade
o automático sofrimento do mecanismo e do automatismo
o simétrico sofrimento da analogia e a análoga dor da simetria
o analítico sofrimento da síntese e a sintética dor da análise
ou, talvez, o tormento das partes do corpo e da quebra da hierarquia entre os diversos corpos específicos
ou o sofrimento da infantilidade benigna
do bumbum, da pedagogia, dos formalistas e dos educadores
da inconsolável inocência e ingenuidade
do afastamento da realidade
das quimeras, ilusões, divagações, ficções e bobagens
do idealismo sublime
do idealismo inferior, surrado e oculto em cantos escuros
de sonhar acordado
ou, talvez, o estranhíssimo tormento de ser apequenado
a tortura de ser um eterno candidato
o tormento de pretender
o tormento do eterno aprendizado
ou, quem sabe, simplesmente a tortura de se esforçar acima de suas habilidade e a daí resultante tortura da inabilidade, geral e particular
a agonia de pretender ser mais do que se é de fato e a consequente soberba
o sofrimento da depreciação
a tortura da poesia superior e inferior
ou o surdo sofrimento da escolha desleal e incorreta
ou, mais exatamente, a angústia da idade, em seu sentido particular e geral
a tortura do anacronismo
a tortura do modernismo
o sofrimento provocado pelo surgimento de novos estratos sociais
a dor dos semicultos
a dor dos incultos
a dor dos cultos
ou, simplesmente, a dor da indecência pseudocultural
a dor da idiotice
da sabedoria
da feiura
dos encantos e feitiços
ou, talvez, a tortura da lógica implacável e da consistência da estupidez
a angústia de recitar
o desespero de imitar
a enfadonha tortura da chatice e da eterna repetição das mesmas coisas
ou, possivelmente, a hipomaníaca tortura da hipomania
a inexprimível tortura da inexpressão
a dor da torpeza
a dor de dedo
de unha
de dente
de ouvido
a tortura da aterradora interrelação, interdependência, limitação mútua, da compenetração recíproca de todas as torturas e de todas as partes, bem como o tormento de cento e cinquenta e seis mil trezentas e vinte e quatro e meia outras torturas, sem considerar as mulheres e as crianças, como teria dito um antigo escritor francês do século XVI.


Qual dessas torturas deverá ser a tortura-mãe, e qual a parte a ser considerada como um todo? Por onde agarrar este livro e quais as torturas ou as partes acima mencionadas que devem ser destacadas? Malditas partes, das quais jamais conseguirei me libertar. Oh, que opulência de parte e que riqueza de torturas! Onde está a mãe primordial de todas as torturas e que deveria ser o princípio de todos os tormentos: metafísico, físico, sociológico ou psicológico? E, no entanto, devo; devo e não posso dever, porque o mundo seria capaz de declarar que não tenho consciência dos meus fins e que fico girando absurdamente em torno do calcanhar. Mas, neste caso, talvez fosse mais racional definir e demonstrar com palavras a própria gênese desta obra, não me baseando mais em torturas e sofrimentos, mas em algo que se refere a ela. Que a obra nasceu em função:



da relação entre os pedagogos e os alunos nas escolas

da estupidez dos espertalhões
das pessoas desprezadas e endeusadas
dos expoentes máximos da literatura nacional contemporânea, bem como dos mais acabados, construídos e enrijecidos representantes da crítica
do comportamento das colegiais
dos homens maduros e mundanos
da interdependência com dândis, janotas, narcisos, estetas, espíritos elevados e frequentadores dos salões em voga
dos conhecedores da vida
da escravidão das tias culturais
dos habitantes das cidades
da aristocracia rural
dos míseros doutorezinhos das províncias, engenheiros e funcionários públicos com horizontes estreitos
dos funcionários mais graduados, médicos e advogados com horizontes mais amplos
dos aristocratas – de nascença ou de outras origens da plebe.


No entanto, pode ser que a obra tenha sido iniciada pelo sofrimento de ter tido que conviver com uma pessoa concreta, por exemplo, com o especialmente repulsivo senhor X, com o senhor Z, a quem desprezo, ou com senhor N, que me entedia e aborrece. Ah, como é terrível ter que conviver com tais pessoas! E pode ser que a razão e a finalidade deste livro tenha sido o desejo de demonstrar meu desprezo por esses senhores – o de enervá-los, enfurecê-los e conseguir safar-me deles. Nesse caso, o motivo teria sido concreto, pessoal, privado e unidirecional.



Mas teria a obra nascido de uma imitação de obras-primas?

Da incapacidade de criar uma obra normal?
De sonhos?
De complexos?
Quem sabe se não foi motivada por recordações da infância?
Ou, talvez, apenas tenha começado a ser escrito e logo foi se desenvolvendo naturalmente?
De uma psicose do medo?
De uma psicose obsessivo-compulsiva?
Talvez de uma bolha?
De uma pitada?
De uma parte?
De uma partícula?
De um dedo?


Deverá também se estabelecido,proclamado e definido se a obra é uma novela, uma paródia, um diário, um panfleto, uma variação sobre um tema,um estudo, bem como o que é nela mais dominante: o humor, a ironia, um significado mais profundo, sarcasmo, burla, invectiva, idiotice, pur nonsens, pure blague – e mais ainda: se ela não passa de uma pose, um engano, um artifício, estafa, carência de humor, anemia de sentimentos, atrofia da imaginação, solapamento da ordem e negação das ideias universais. Mas o somatório de todas essas possibilidades, torturas, definições e partes é tão incômodo e inconcebível – além de inesgotável – que, com o mais profundo sentimento de responsabilidade pela palavra e depois de uma análise o mais escrupulosa possível, é preciso dizer que não se sabe nada,piu, piu, passarinho. Portanto, todos aqueles que quiserem compreender melhor e compenetrar-se ainda mais estão convidados para ler “Filiberto forrado de criança”, porque a minha resposta a todas essas perguntas atormentadoras está oculta em misterioso simbolismo. Pois Filiberto – definitivamente construído e com base numa analogia com Filidor – oculta, em sua estranha unidade, o definitivo e secreto sentido da obra. Depois de evidenciá-lo, nada mais impedirá, a quem quer que seja, entrar ainda mais profundamente no emaranhado destas partes monótonas e separadas.



(Ferdydurke, tradução de Tomasz Barcinski)


(Ilustração: Giger)


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