quarta-feira, 14 de outubro de 2009

DÔIA NA JANELA, de Roberto Drummond







Dôia ficava olhando da janela. Como Dôia podia voar, puseram grades na janela, não eram grades como as das cadeias, eram pintadas de verde. Com a ponta da unha, Dôia arranhava as grades, a cada manhã, para nunca perder a conta dos dias que estava ali. Já havia 38 arranhões, como esmalte descascando na unha, nas grades verdes.

À noite a vista era mais bonita da janela e Dôia via as luzes da cidade. Lá longe, onde a cidade acabava, parecia haver um mar, com navios chegando. Dôia gostava de olhar o anúncio luminoso da Coca-Cola e certas noites o único consolo de Dôia era aquela garrafa enchendo um copo de Coca-Cola. Dôia se imaginava usando uma calça Lee desbotada e tomando uma Coca num barzinho ao ar livre, onde cresciam samambaias longas como os cabelos de Dôia.

À tarde Dôia larga o toca-fitas com as gravações que a irmã trouxe. Eram as vozes e os barulhos de sua casa. Dôia ouvia o pigarro do pai, com o canto do sabiá ao fundo. Às vezes a mãe de Dôia cantava e os irmãos mandavam recado para Dôia. Dôia escutava os latidos da cachorra Laika e prometia ser boa para Laika quando voltasse para casa.

O quarto onde Dôia ficava era pintado de branco. Na cabeceira da cama penduraram um crucifixo e Dôia foi se tronando amiga daquele Jesus Cristo esquálido. Durante o dia, Dôia dormia. Logo que eram acesas as primeiras luzes da cidade, Dôia debruçava na janela. Ficava de joelhos, olhando da janela, e já estava com calos, como as beatas.

Quando levaram Dôia para aquele quarto, ela olhava da janela com seus olhos cor de bala de menta. Depois o irmão de Dôia teve a idéia de trazer a luneta que foi do avô. Dôia tinha uma vaga lembrança do avô, sempre de terno de linho, e falando nas estrelas. Com a luneta, Dôia olhava o céu e tinha esperança de ver um disco voador.

À noite, Dôia só deixava a janela quando escutava o barulho do rato que apelidou de Salameminguê. Ele era manso e Dôia alisava seu pelo e uma noite Dôia cantou “We Shall Overcome” para Salameminguê ouvir. Dôia nunca dava muito pão para Salameminguê, como medo de que ele engordasse e não pudesse mais passar pela fresta por onde entrava no quarto.

Dôia já conhecia todos os barulhos da noite. De madrugada os trens apitavam como se passassem debaixo de sua janela. Â Meia-Noite e 35 um homem espancava uma mulher numa casa debaixo de um luminoso dos pneus Firestone. Antes de receber a luneta, Dôia achava que a briga era de algum filme da “Sessão Coruja”, na televisão. Com a luneta, localizou a casa da briga e via, pela janela acesa, o homem espancar a mulher e depois se ajoelhar aos pés dela. Dôia desviava a luneta quando os dois começavam a se abraçar na cama.

Depois Dôia fica esperando o avião que ia para Nova Iorque. Dôia conhecia os aviões pelo barulho que faziam e achava bom vê-los voando baixo, as janelinhas acesas parecendo brasas vermelhas. Os passageiros daqueles aviões nunca souberam o quanto Dôia os amava. Dôia só ia dormir depois que passava o satélite artificial “Pássaro Madrugador”. Antes de fechar os olhos, Dôia dava um olhar para Sírius, a estrela.

Na véspera de receber alta, Dôia descobriu que amava cada coisa daquele mundo onde esteve encerrada. Dividiu um pedaço de pão com o rato Salameminguê e lhe disse, alisando sua cabeça, que ia levá-lo com ela. Dôia mudou de idéia e achou que Salameminguê devia ficar, para fazer companhia a quem ocupasse o quarto das grades verdes. E Dôia ficou olhando o anúncio luminoso da Coca-Cola, depois Dôia olhou o casal que brigava na casa debaixo do anúncio dos pneus Firestone e teve vontade de dizer aos dois: juízo, hein? Quando passou o avião para Nova Iorque, Dôia acenou e gritou boa viagem para os passageiros. Dôia ainda olhou lá longe, viu dois navios chegando, e ficou com a luneta na mão, esperando o satélite “Pássaro Madrugador”.

Era noite de lua cheia e Dôia viu três jipes parando onde iam fazer uma praça ou uma quadra de basquete. Uns homens desceram dos jipes e Dôia os viu sumir debaixo de umas árvores. Dôia ajustou a luneta e os homens voltaram carregando uma cruz, como as usadas na encenação da Semana Santa. Puseram a cruz no chão e Dôia os viu arrastar um homem de dentro de um jipe. O homem estava com as mãos amarradas atrás, com uma corda de bacalhau, e usava uma calça Lee desbotada e um quedes azul, sem meia. Sua blusa Dôia imaginou como sendo “Adidas”, comprada em Buenos Aires. A barba do homem de calça Lee era grande e Dôia achou-o parecido com Alain Delon. Os cabelos eram louros como os de Robert Redford.

Desataram as mãos do homem de calça Lee e o arrastaram para a cruz e três homens apontaram suas metralhadoras Ina para o homem de calça Lee desbotada. Dôia soltou um grito, que os outros internos pensaram que fosse alguém tendo um pesadelo, e o homem de calça Lee tirou o quedes azul, a calça Lee, a camisa Adidas e ficou nu, vestido apenas com uma cueca Zorba laranja. Os homens o agarraram, houve gritos abafados, depois um silêncio, com o rádio de um táxi tocando música, e Dôia começou a ouvir o barulho de martelo batendo prego. Dôia mudou de posição na janela, ajustou mais a luneta e viu os homens crucificando o homem de cueca Zorba laranja.

Dôia nunca soube quantos minutos se passaram. Os homens ergueram a cruz, fincando-a no chão, e Dôia viu um Cristo crucificado de cueca Zorba laranja. O Cristo de cueca Zorba laranja falava alguma coisa que o vento levava à janela de Dôia e Dôia não conseguia ouvir. A última lembrança de Dôia foi a de um homem subindo uma escada com uma garrafa de Coca-Cola na mão, molhando um algodão com Coca-Cola e passando nos lábios do Cristo de cueca Zorba laranja.

De manhã cedo, o médico que ia dar alta a Dôia, o dr. Garret, achou-a pálida e com olheiras. Dôia contou que não tinha dormido porque de noite crucificaram um homem e ela assistiu tudo da janela do quarto, olhando com a luneta. O dr. Garret ajeitou os óculos, como fazia quando alguma coisa o espantava, e pediu a Dôia que contasse como foi. O dr. Garret ouviu tudo, sempre ajustando os óculos e disse:

- Escuta, Dôia, o homem que crucificaram não se parecia com ninguém que você já tenha visto, mesmo em gravura?

- Sim, se parecia – respondeu Dôia.

- Com quem? – perguntou o dr. Garret.

- Com o Alain Delon, menos nos cabelos. Os cabelos dele eram louros como os de Robert Redford...

- Eram cabelos compridos, Dôia? – perguntou o dr. Garret.

- Eram – respondeu Dôia.

- Ele tinha barba, Dôia? – perguntou o dr. Garret.

- Tinha – respondeu Dôia.

- Agora, Dôia, me diga uma coisa – falou o dr. Garret com um ar misterioso – Quantos anos o homem parecia ter.

- Uns 33 – respondeu Dôia.

- E estava descalço e quase nu? – insistiu o dr. Garret.

-Estava – respondeu Dôia – Só ficou com a cueca Zorba laranja.

- Então, Dôia – disse o dr. Garret, sem conseguir conter a emoção – a cena que você presenciou aconteceu há muitos e muito e muitos anos...

- Como? – perguntou Dôia.

- Isso mesmo, Dôia. Aconteceu há quase 2 mil anos – respondeu, penalizado o dr. Garret.

Mais tarde, quando tomava um café com um colega da clínica, o dr. Garret contava que uma sua cliente teve uma alucinação e viu um homem ser crucificado como Jesus Cristo.

- Sabe o que estavam fazendo de noite na praça onde ela viu a crucificação? – perguntou o dr. Garret, ajustando os óculos – Estavam plantando rosas nuns canteiros...

Nos 385 dias que ainda ficou ajoelhada olhando da janela, Dôia nunca se esqueceu do Cristo de cueca Zorba laranja, parecido com Alain Delon. Ele costumava aparecer nos sonhos de Dôia transformado numa rosa loura como os cabelos de Robert Redford.



(A Morte de D.J. em Paris)



(Ilustração: Saturno Buttò)



7 comentários:

  1. gosto muito deste conto. ele dá margem a muitas infer~encias, tb tenho a minha a respeito.
    se puder, um dia visite o meu cantinho:

    ignoto Jardim

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Ótimo conto. Teria Dôia tido uma alucinação ou teria visto uma cena de tortura?

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  4. Isto mostra o domínio da mídia sobre as pessoas. O crucificado, semelhante a Alain Delon. Este,+ ref. para ela que o próprio Cristo, tb consumista: vestido de Zorba. Nos seus lábios, passou-se coca-cola - consumo.

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    1. Caramba, não tinha percebido essa parte da crucificação que representou Jesus como sendo uma consumista atual.

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