quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A DESCOBERTA DA AMÉRICA, de Tzvetan Todorov









Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso. Mal acabamos de formulá-lo em linhas gerais já o vemos subdividir-se em categorias e direções múltiplas, infinitas. Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Esse grupo, por sua vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie. Escolhi esta problemática do outro exterior, de modo um pouco arbitrário, e porque não podemos falar de tudo ao mesmo tempo, para começar uma pesquisa que nunca poderá ser concluída.



Mas como falar disso? No tempo de Sócrates, o orador costumava perguntar ao auditório qual o seu modo de expressão, ou gênero preferido: o mito, isto é, a narração, ou a argumentação lógica? Na época do livro, a decisão não pode ser tomada pelo público. A escolha teve de ser feita para que o livro existisse. Temos de nos contentar em imaginar, ou desejar, um público que teria dado tal resposta, e não outra, e em escutar aquela sugerida ou imposta pelo próprio assunto. Escolhi contar uma história. Mais próxima do mito do que da argumentação, mas distinta em dois planos: em primeiro lugar, é uma história verdadeira (o que o mito podia mas não devia ser), e, em segundo lugar, meu interesse principal é mais o de um moralista do que o de um historiador. O presente me importa mais do que o passado. Não tenho outro meio de responder à pergunta do como se comportar em relação a outrem a não ser contando uma história exemplar (este é o gênero escolhido), uma história tão verdadeira quanto possível,mas tentando nunca perder de vista aquilo que os exegetas da Bíblia chamavam de sentido tropológico, ou moral. Neste livro se alternarão, um pouco como num romance, os resumos, ou visões de conjunto resumidas, as cenas, ou análises detalhadas recheadas de citações, pausas, onde o autor comenta o que acaba de acontecer, e, é claro, elipses, ou omissões frequentes. Não é esse o ponto de partida de toda história?



Entre os vários relatos que temos à disposição, escolhi um: o da descoberta e conquista da América. Por conveniência, estabeleci uma unidade de tempo – os cem anos que seguem a primeira viagem de Colombo, isto é, basicamente, o século XVI. Estabeleci também uma unidade de espaço – a região do Caribe e do México, chamada às vezes de Meso-América, e, finalmente, uma unidade de ação – a percepção que os espanhóis têm dos índios será meu único assunto, com uma única exceção, no caso de Montezuma e os seus.



Duas razões fundamentaram a escolha deste tema como primeiro passo no mundo da descoberta do outro. Em primeiro lugar, a descoberta da América, ou melhor, dos americanos, é sem dúvida o encontro mais surpreendente de nossa história. Na “descoberta” dos outros continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de estranheza. Os europeus nunca ignoraram totalmente a existência da África, ou da Índia, ou da China, sua lembrança esteve sempre presente, desde as origens. A Lua é mais longe do que a América, é verdade, mas hoje sabemos que aí não há encontro, que esta descoberta não guarda surpresas da mesma espécie. Para fotografar um ser vivo na Lua, é necessário que o cosmonauta se coloque diante da câmera, e em seu escafandro há um só reflexo: o de um outro terráqueo. No início do século XVI, os índios da América estão ali, bem presentes, mas deles nada se sabe, ainda que, como é de se esperar, sejam projetadas sobre os seres recentemente descobertos imagens e idéias relacionadas a outras populações distantes. O encontro nunca mais atingirá tal intensidade, se é que esta é a palavra adequada. O século XVI veria perpetrar-se o maior genocídio da história da humanidade.



Mas não é unicamente por ser um encontro extremo, e exemplar, que a descoberta da América é essencial para nós, hoje. Além deste valor paradigmático, ela possui outro, de causalidade direta. A história do globo é, claro, feita de conquistas e derrotas, de colonizações e descobertas dos outros; mas, como tentarei mostrar, é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente. Apesar de toda data que permite separar duas épocas ser arbitrária, nenhuma é mais indicada para marcar o início da era moderna do que o ano de 1492, ano em que Colombo atravessa o Oceano Atlântico. Somos todos descendentes diretos de Colombo, é nele que começa nossa genealogia – se é que a palavra começo tem um sentido. Desde 1492 estamos, como disse Las Casas, “neste tempo tão novo e a nenhum outro igual” (Historia de las Indias, I, 88). A partir desta data, o mundo está fechado (apesar de o universo tornar-se infinito). “O mundo é pequeno”, declarará peremptoriamente o próprio Colombo (Carta Rarissima, 7.7.1503). Os homens descobriram a totalidade de que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo. Este livro será u ma tentativa de entender o que aconteceu neste dia, e durante o século seguinte, através da leitura de alguns textos cujos autores serão minhas personagens. Estes monologarão, como Colombo, dialogarão através de atos, como Cortez e Montezuma, ou através de enunciados eruditos, como Las Casas e Sepulveda, ou ainda, como Durán e Sahagún, manterão um diálogo, menos evidente, com interlocutores índios.


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(A Conquista da América – A Questão do Outro, tradução de Beatriz Perrone Moisés)


(Ilustração: Fritz Aigner)


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