sábado, 24 de outubro de 2009

COMICHÃO PELO TEATRO, de David Sedaris










O homem foi mandado para a nossa classe a fim de nos inspirar e, por mim, acredito que fez um excelente trabalho. Após de apresentar de forma tranquila e cordial, dirigiu-se ao fundo da sala só para ser impedido, no meio do caminho, pelo que começamos a conhecer como “a parede invisível”, aquela barreira transparente, percebida apenas por psicóticos, viciados em drogas e outros membros do mundo dos espetáculos.

Fiquei fascinado enquanto ele se aprumava e investigava a parede imaginária, passando as mãos abertas sobre a superfície aparentemente dura, na esperança de encontrar uma saída. Após alguns momentos, puxava uma corda invisível e lutava contra ventos fantásticos, violentos. 

Você se dá conta de que mora em uma cidade pequena quando chega à oitava série sem nunca ter visto um mímico. Para mim, aquele homem era um profeta, um gênio, um pioneiro no campo do entretenimento – e aqui estava ele, em Raleigh, na Carolina do Norte! Foi hilariante sua imitação da professora, abaixando os cantos da boca e revirando a bolsa imaginária à procura de um chiclete e de uma aspirina. Aquele cara era muito engraçado! 

Voltei para casa e mostrei a parede invisível a meu irmão de dois anos, que socava a parede verdadeira ao lado de seu cercadinho, gritando e gemendo de raiva. Quando minha mãe perguntou o que eu fizera para provocá-lo, ergui as mãos em inocente zombaria, antes de abaixá-las para pegar o bebê imaginário que fazia bagunça a meus pés. Dei leves tapinhas nas costas do meu fantasminha a fim de induzir o arroto e estava examinando a fralda suja quando vi minha mãe assumir a expressão reservada apenas ao horror indizível. Vira aquele olhar apenas duas vezes: uma, quando foi surpreendida no quintal por um porco raivoso, arremetendo contra ela, e a outra, quando lhe disse que queria um casaco de veludo cor de pêssego, com as calças combinando. 

“Não sei quem incentivou você”, ameaçou, “mas eu me mato antes de vê-lo crescer e se tornar um palhaço. Se quiser pintar o rosto e sair rebolando pelas esquinas, terá de encontrar um outro lugar para morar, porque não vou de jeito nenhum deixar você viver na minha casa”. Estava saindo, quando acrescentou, “nem no meu quintal.” 

Com medo de retaliação, obedeci, encerrando minha carreira de mímico com um suspiro, em vez do silêncio de grande efeito que desejava. 

O ator visitante voltou à nossa sala alguns meses depois, tirando o sobretudo para revelar uma atadura compressiva preta, usada com um colar cervical acinzentado, resultado de um acidente recente de carro. A tarefa daquela tarde era nos iniciar nas obras de William Shakespeare e, mais uma vez, fiquei completamente fascinado pelo seu charme e habilidade. Quando as palavras começavam a ficar confusas, bastava prestar atenção ao rosto e às mãos do ator para compreender que aquele personagem específico não estava apenas furioso, mas também vingativo. Eu amava a habilidade subjacente a esta língua ilusoriamente bela. Parecia uma vergonha que as pessoas não falassem mais daquela forma, e comecei uma campanha pela reintrodução do inglês elisabetano aos cidadãos da Carolina do Norte. 

“Porventura, gentil senhora, pensais que estou injustificadamente apoquentado pela lamentável condição de vossos aposentos?”, perguntei à minha mãe, enquanto passava o aspirador de pó no carpete da sala de estar, já que ela sofria de uma preguiça visceral para se preocupar com isso. “Estas torpes manchas, a própria evidência da vida, macularam-vos não apenas o capacho de têmpera áspera como também o caráter. Estais ensandecida, mulher? Fosse crime punível negligenciar vossa morada, vós, minha ama de espírito débil, seríeis pendurada na árvore mais alta em penitência por tais hábitos vergonhosos. Não tendes vestes a lavar e passar em quietude? Não vedes os pratos de porcelana e as canecas generosas esperando serem limpas das manchas? Engendrai vosso trabalho, abominável dama, e sede célere, antes que os frutos de vosso próprio ventre ergam, juntos, os punhos, imbuídos de ira e indignação, impetuosamente extraindo, à força, o último suspiro da venenosa garganta que vosso pescoço altivo e ereto encerra. Ide agora, mandriona, fazei-o!” 

Minha mãe reagiu como se eu a tivesse chicoteado com um pequeno novelo de lã. A intenção era evidente, mas a arma, estranha e inadequada. Eu sabia, pelo estado do meu quarto, que ela tinha passado o dia seguinte procurando drogas na minha cômoda. As roupas, que me orgulhava em dobrar cuidadosamente, estavam socadas nas gavetas, sem a menor preocupação com cor ou categoria. Senti o cheiro de cigarros e percebi as manchas de café na escrivaninha. Minha mãe havia sido agraciada com a absolvição em várias outras ocasiões, mas desarrume minhas gavetas e havereis conquistado um inimigo eterno. Amarrando uma pluma na tampa da minha caneta esferográfica, rebusquei carta para ela. “Aquilo que procurais tão desesperadamente”, escrevi, “não reside em meus aposentos tão bem ordenados, mas no questionável conteúdo de vosso próprio caráter.” Coloquei o bilhete em sua bolsa, dobrado duas vezes e lacrado com a parafina das velas que agora usava para iluminar o quarto. Comecei a ficar emburrado, recusando-me a mudar, até que ganhei uma cópia das obras completas de Shakespeare. Depois que foram compradas, descobri que eram complicadas e difíceis de entender. Ao ler as palavras, eu me sentia embotado e burro, mas ao pronunciá-las, considerava-me poderoso. Achei melhor simplesmente levar o livro comigo de quarto em quarto, de vez em quando passando os olhos por palavras engraçadas que pudesse acrescentar ao meu sempre doce vocabulário. A hora do jantar tornou-se insuportável ou excruciante, dependendo do meu humor. “Parece-me, amável senhor, gentilíssima senhora, caros irmãos, que esta ave é mui mais saborosa e suculenta, tendo cozido em seus próprios sucos, por tanto tempo quanto leva o sol para cruzar o céu plúmbeo, no curso de uma hora de crepúsculo, até ficar rosada e nédia. Crocante, conquanto úmida, esta ave roliça contentava-se na companhia de outras iguarias tão primorosamente assadas. Ouvi-me, gentis parentes, prestai atenção a minhas palavras, pois creio também ser arriscado e caprichoso selar meu garfo com ambos, ave e cenoura, a um só tempo, os sucos gêmeos misturando-se em delicada harmonia que adula e aviva minha língua, em espírito de júbilo incontido! O que sugeriríeis vós, distinto pai, irmãs e irmão infante, que levantássemos nossas taças em brinde a este festim opíparo, preparado com amor e suprema graça por essa mulher obsequiosa a quem temos a ventura de chamar de esposa, amante ou mãe?” 

Meu entusiasmo não tinha limites. Logo minha mãe estava literalmente suplicando para que eu ficasse no carro, enquanto ela ia ao banco ou à mercearia. 

Eu estava no consultório do ortodontista, muito aborrecido com a prática da odontologia, quando o ator visitante voltou à nossa classe. 

“Pena você ter perdido”, minha amiga Lois comentou. “O homem era tão indescritivelmente impressionante que quase chorei, de tão brilhante que era.” Ela mostrava as mãos como se carregasse uma bandeja. “Não sei o que mais posso dizer. Simplesmente não existem palavras. Poderia tentar explicar a autenticidade dele, mas você nunca seria capaz de entender. Nunca”, repetiu. “Nunca, nunca, nunca.” 

Lois e eu éramos amigos havia seis meses quando nosso relacionamento subitamente ganhou um caráter competitivo. Nunca me importara com quem conseguia notas mais altas ou mesada maior. Cada um de nós tinha seus pontos fortes, o mais importante era respeitar-nos um ao outro no que fazíamos de melhor. Lois agüentava tomar mais Chablis do que eu e a respeitava por isso. Seu apavorante excesso de autoconfiança permitia-lhe marchar para a escola usando uma peruca afro cor de ferrugem, e eu lhe dava apoio integral. Tinha mais discos do que eu e como era nove meses mais velha, também sabia dirigir e o fazia como se estivesse correndo para apagar um incêndio. Ótimo, pensei, sorte dela. Minha superior sabedoria e generosidade inata permitiram-me ficar feliz de verdade por Lois, até o dia em que questionou minha capacidade de entender o ator visitante. Nas primeiras vezes em que ele se apresentara, Lois havia se comportado exatamente como o restante da classe, rindo de seu colar cervical e revirando os olhos ao ver a protuberância do tamanho de uma tangerina entre as suas coxas. Eu fora o primeiro a perceber seu brilhantismo, e agora ela dizia que eu não conseguiria entendê-lo? Quer crer que não. 

“Honestamente, mulher”, afirmei à minha mãe, a caminho da lavanderia, “pensar que esse desprezível verme pudesse me falar de grandeza como se me fora invisível, é maio do que posso suportar. Suas palavras atingem-me o coração com a força de um golpe cruel, deixando-me tão aturdido quanto envergonhado. Não obstante, ouvi-me, pois ganharei tempo silenciosa e astutamente e revidarei no exato momento em que ela menos esperar. Tal afronta não passará sem desagravo, disso podereis ficar descansada, gentil dama. Minha vingança terá o doce gosto da infrutescência mais madura e hei de saboreá-la aos poucos.” 

“Você vai superar essa fase”, minha mãe respondeu. “Tenho certeza de que, em algumas semanas, tudo estará de volta ao normal. Vou entrar agora para buscar as camisas de seu pai e quero que você espere aqui, no carro. Acredite-me, tudo isso logo será esquecido.” 

Essa se tornara sua resposta para tudo. Ela havia feito uma investigação e concluído que eu fora contaminado pelo que sua irmã chamava de “comichão pelo teatro”. Minha mãe estava convencida de que era uma fase, exatamente como todas as outras. Algumas semanas de quixotismo, e eu deixaria o mundo dos espetáculos, tal como deixara o violão e minha agência de detetives particulares. Odiava ver minhas ambições de vida reduzidas à categoria de um simples resfriado. Havia em mim um vírus maduro. Talvez ficasse dormente por alguns anos, mas jamais deixaria meu corpo. 




(Pelado, tradução de Sarita Lopes)



(Ilustração: Degas - dance class)







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