quarta-feira, 21 de outubro de 2009

HERESIAS DE MENOCCHIO, de Carlo Ginzburg









Começou denunciando a opressão dos ricos contra os pobres através do uso de uma língua incompreensível como o latim nos tribunais: “Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e sã enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado”. Mas esse era só um exemplo de uma exploração geral, da qual a Igreja era cúmplice e participante: “E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres. Se têm dois campos arrendados, esses são da Igreja, de tal bispo ou de tal cardeal”. É bom lembrar que Menocchio possuía dois campos arrendados, cujo proprietário ignoramos; quanto ao seu latim, aparentemente se restringia ao Credo e o Pater noster, que aprendera ajudando na missa, e que Ziannuto, seu filho, fora atrás de um advogado logo que o Santo Ofício o colocara na prisão. Porém, essas coincidências, ou possíveis coincidências, não nos devem levar a pistas falsas: o discurso de Menocchio, embora partisse do seu caso pessoal, acabava por abarcar um âmbito muito mais vasto. A exigência de uma Igreja que abandonasse seus privilégios, que se fizesse pobre como os pobres, ligava-se à formulação, na esteira dos Evangelhos, de um conceito diferente de religião, livre de exigências dogmáticas, resumível a um núcleo de preceitos práticos: “Gostaria que se acreditasse na majestade de Deus, que fôssemos homens de bem e que se fizesse como Jesus Cristo recomendou, respondendo àqueles judeus que lhe perguntaram que lei se deveria seguir. Ele respondeu: ‘Amar a Deus e ao próximo’”... Uma tal religião simplificada não admitia, para Menocchio, limitações confessionais. Contudo, a apaixonada exaltação da equivalência de todas as fés, com base na iluminação concedida, em igual medida, a todos os homens – “A majestade de Deus distribuiu o Espírito Santo para todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus, tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão” –, acabou numa explosão violenta contra os juízes e sua soberba doutrinal: “E vocês, padres e frades, querem saber mais do que Deus; são como o demônio, querem passar por deuses na terra, saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio. Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe”. E, abandonando toda reserva, toda prudência, Menocchio declarou recusar todos os sacramentos, inclusive o batismo, por serem invenções dos homens, “mercadorias”, instrumentos de exploração e opressão por parte do clero: “Acho que a lei e os mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso”. Sobre o batismo comentou: “Acho que, quando nascemos, já estamos batizados, porque Deus, que abençoou todas as coisas, já nos batizou. O batismo é uma invenção dos padres, que começam a nos comer a alma antes do nascimento e vão continuar comendo-a até depois da morte”. Sobre a crisma: “Acho que é uma mercadoria, invenção dos homens; todos os homens têm o Espírito Santo e buscam saber tudo e não sabem nada”. Sobre o casamento: “Não foi feito por Deus, mas sim pelos homens; antes, homens e mulheres faziam troca de promessas e isso era suficiente; depois apareceram essas invenções dos homens”. Sobre a ordenação: “Acho que o Espírito Santo está em todo mundo, [...] e acho que qualquer um que tenha estudado pode ser sacerdote, sem ter que ser sagrado, por que tudo isso é mercadoria”. Sobre a extrema-unção: “Acho que não é nada, não vale nada, porque se unge o corpo, mas o espírito não pode ser ungido”. Geralmente se refira à confissão dizendo: “Ir se confessar com padres ou frades é a mesma coisa que falar com uma árvore”. Quando o inquisidor lhe repetiu essas palavras, explicou, com uma pontinha de autossuficiência: “Se esta árvore conhecesse a penitência, daria no mesmo; alguns homens procuram os padres porque não sabem que penitências devem ser feitas para seus pecados, esperando que os padres as ensinem, mas, se eles soubessem, não teriam necessidade de procurá-los”. Estes últimos deveriam se confessar “à majestade de Deus em seus corações e pedir-lhe perdão pelos seus pecados”.



Somente o sacramento do altar escapava às críticas de Menocchio – mas era reinterpretado de maneira heterodoxa. As frases referidas pelos testemunhos soavam, na verdade, como blasfêmias ou negações depreciativas. Quando procurou o vigário de Polcenigo, num dia de distribuição de hóstias, Menocchio exclamou: “Pela Virgem Maria, são muito grandes essas bestas!”. Numa outra vez, discutindo com o padre Andrea Bionima, disse: “Não vejo ali nada mais que um pedaço de massa. Como é que pode ser Deus? E o que é esse tal Deus a não ser terra, água e ar?”. Mas ao vigário-geral explicou: “Eu disse que aquela hóstia é um pedaço de massa, mas que o Espírito Santo vem do céu e está nela. Eu realmente acredito nisso”. O vigário perguntou incrédulo: “O que você acha que seja o Espírito Santo?”. Menocchio respondeu: “Acho que é Deus”. Mas sabia quantas eram a s pessoas da Trindade? “Sim, senhor: Pai, Filho e Espírito Santo”. “Em qual dessas três pessoas você acha que a hóstia se converte?” “Acho que no Espírito Santo.” Semelhante ignorância parecia inacreditável para o vigário: “Quando o pároco fez os sermões sobre o santíssimo sacramento, quem ele disse que estava naquela hóstia?”. Porém, não se tratava de ignorância: “Disse que era o corpo de Cristo, embora eu achasse que era o Espírito Santo, e isso porque acho que o Espírito Santo é maior que Cristo, que era homem, enquanto o Espírito Santo veio pelas mãos de Deus...”. “Disse [...] embora eu achasse”: apenas lhe era apresentada a ocasião, Menocchio confirmava quase com insolência a própria independência de julgamento, o direito de ter uma posição autônoma. E acrescentou para o inquisidor: “O bom do sacramento é quando alguém se confessa e vai comungar; então está com o Espírito Santo, e o Espírito Santo está alegre [...]; quanto ao sacramento da eucaristia, é uma coisa feita para controlar os homens, inventada pelos homens graças ao Espírito Santo; a celebração da missa é uma criação do Espírito Santo, assim como adorar a hóstia par que os homens não sejam como animais”. A missa e o sacramento do altar eram, portanto, justificados de um ponto de vista quase político, como meio de civilidade – todavia, numa frase que lembrava involuntariamente, como signo invertido, o que tinha dito ao vigário de Polcenego (hóstias [...] bestas”).






(O Queijo e os Vermes: o Cotidiano e as Idéias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição, tradução de Maria Betânia Amoroso).






(Ilustração: políptico de São Vicente, de Nuno Gonçalves)






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