quinta-feira, 6 de agosto de 2009

SEM FEIJÃO, O HOMEM NEM TERIA SAÍDO DA IDADE MÉDIA, de Umberto Ecco








Quando se aproxima o segundo milênio, porém, os números mudam e a população cresce. Alguns especialistas falam em 22 milhões de habitantes na Europa de 950 e outros citam 42 milhões no ano 1000. No século 14, a população européia tinha disparado para entre 60 e 70 milhões de pessoas. Embora os números variem, há um consenso: nos 500 anos que se seguiram ao ano 1000, a população da Europa dobrou ou chegou mesmo a triplicar.

As razões para o crescimento europeu são difíceis de identificar. Entre os séculos 11 e 13, ocorreram transformações radicais na vida política, na arte, na economia e, como veremos, na tecnologia. Essa nova explosão de energia física e de idéias era evidente para quem vivia naquela época. O monge Radulphus Glaber, nascido nos últimos anos do primeiro milênio, começou a escrever seu famoso Historiarum 30 anos depois. O monge não tinha uma visão particularmente feliz da vida e fala de uma fome, em 1033, descrevendo cenas atrozes de canibalismo entre os camponeses mais pobres. Mas, de alguma forma, ele percebeu que, com o ano 1000, um novo espírito despertava no mundo e as coisas - que até então iam mal - começavam a melhorar.

Assim, ele escreve uma passagem quase lírica, que se destaca nos anais da Idade Média. Nela, ele conta como, no fim do milênio, a terra de repente floresceu como uma campina na primavera: “Corria o terceiro ano depois do ano 1000, quando, em todo o mundo, mas especialmente na Itália e nas regiões da Gália, houve uma renovação das basílicas, com cada nação cristã empenhando-se para construir a mais bela. Parecia que a própria terra, despertando-se e livrando-se dos sinais da velhice, vestia-se com um novo e branco manto de igrejas.” O florescimento do estilo românico, porque é disso que Radulphus está falando, não ocorreu repentinamente em 1003 - ele escrevia mais como poeta do que como historiador. Mas falava da disputa de poder e prestígio entre as várias cidades-estados, falava de novas técnicas arquitetônicas e do renascimento da economia, porque não se pode construir tais igrejas sem riqueza. Ele falava de igrejas de dimensões bem maiores que suas predecessoras, igrejas capazes de acomodar uma população em crescimento.

Naturalmente, pode-se dizer que, com as reformas de Carlos Magno, com a criação do Sacro Império Romano-Germânico, com o rejuvenescimento das cidades e o nascimento das comunidades, a situação econômica também melhorou. Mas, não seria possível também dizer o contrário, que a situação política evoluiu, as cidades voltaram a florescer, por que alguma coisa tinha melhorado a vida cotidiana e as condições de trabalho?

Nos séculos que precederam o ano 1000, um novo sistema trienal de rotação de culturas foi paulatinamente adotado, permitindo que a terra produzisse mais. Mas a agricultura exige ferramentas e animais de carga e nessa frente também houve novidades. Pouco antes do ano 1000, os cavalos começaram a usar ferraduras - até então seus cascos eram atados com tecidos - e estribos - esse últimos, claro, para benefício dos cavaleiros e não dos camponeses. Para os camponeses, o revolucionário foi a invenção de um novo tipo de rédea para cavalos, bois e outras bestas de carga que se mostrou revolucionária. As antigas obrigavam o animal a tensionar os músculos do pescoço, comprometendo a traquéia. A nova envolvia os músculos peitorais, aumentando a eficiência do animal em 60% e permitindo que em certas tarefas o cavalo substituísse o boi - mais lento para o trabalho. Além disso, enquanto no passado os cavalos eram alinhados horizontalmente, agora podiam ser organizados em fila, aumentando sua capacidade de puxar cargas e objetos. Nessa época mudaram também os métodos de arar. O arado passou a ter dois eixos giratórios, um para abrir a terra e outro para revolvê-la. Embora essa máquina já fosse conhecida pelos nórdicos por volta do século 2º, ela só se espalhou pela Europa no século 12.

Mas eu realmente gostaria de falar sobre as leguminosas, não apenas os feijões, mas também as lentilhas e ervilhas. Todos esses frutos da terra são ricos em proteínas vegetais, como sabem todos os que fizeram uma dieta com pouca carne, pois os nutricionistas insistem em dizer que um bom prato de lentilhas ou ervilhas secas tem o mesmo valor nutritivo de um bife bem suculento. Os pobres da Idade Média não comiam carne, a não ser que conseguissem criar algumas galinhas ou caçassem ilegalmente nas florestas dos senhores feudais. E, como mencionei antes, essa dieta pobre produziu uma população desnutrida, magra, doentia, de baixa estatura e incapaz de cultivar os campos. Assim, no século 10, o cultivo de legumes começou a disseminar-se, com profundos efeitos sobre a Europa. Os trabalhadores puderam comer mais proteínas e, como resultado, ficaram mais fortes, viveram mais, tiveram mais filhos e repovoaram um continente.

Acreditamos que as invenções e descobertas que mudaram nossas vidas dependeram de equipamentos complexos. A verdade é que ainda estamos aqui - nós, europeus e também os descendentes dos pioneiros do Mayflower e dos conquistadores espanhóis - por causa do feijão. Sem feijões, a população européia não teria dobrado em poucos séculos, não seríamos hoje centenas de milhões de pessoas no continente e alguns de nós, até mesmo alguns leitores deste artigo, não existiriam. Alguns filósofos acham que assim teria sido melhor, mas não sei se todos concordam.

E os não-europeus? Não conheço bem a história dos feijões em outros continentes, mas certamente sem os feijões europeus a história desses continentes seria diferente, assim como a história comercial da Europa seria diferente sem a seda da China e as especiarias da Índia.

Acima de tudo, parece-me que essa história de feijões, lentilhas e ervilhas é importante para nós. Em primeiro lugar, ensina-nos que problemas ecológicos devem ser levados a sério. Em segundo lugar, sabemos que, se os ocidentais comessem arroz integral - que, aliás é delicioso - consumiríamos menos comida e comeríamos melhor. Mas quem pensa nisso? Todo mundo vai dizer que a maior invenção do milênio é a televisão ou o microchip. Mas seria bom se conseguíssemos aprender alguma coisa com a Idade Média.





(OESP, tradução de Ruth Helena Bellinghini)





(Ilustração: mercado; autor não identificado)







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