sexta-feira, 14 de agosto de 2009

FUTURA MAMÃE, de Dóris Fleury








- É, realmente você está grávida, Luciana.

- Não é possível!

Depois de meses enchendo o saco do ginecologista bonitinho, ele até devia ficar contente que eu finalmente tivesse me ferrado. Mas o cara era legal.

- É sim, Luciana. Olha o resultado do teste.

Comecei a chorar na frente dele.

- Não fique assim... Converse com seu namorado...

- Mas eu tomei a pílula!

- Todos os dias?

- Todos!

- Bom, cem por cento de segurança nenhum método dá...

Voltei para casa de ônibus, fungando e soluçando. Telefonei pro meu namorado (anterior ao artista plástico):

- Vem aqui que deu zebra.

Justiça seja feita: o cara recebeu a notícia na boa.

- Essas coisas acontecem.

- Mas justo comigo?

- E agora, o que você quer fazer?

- Não posso ter esse filho... Nem cheguei ao segundo ano da faculdade...

- Quer fazer aborto?

Gelei. Me imaginei numa mesa de metal fria, com algum médico estranho arrancando um bebezinho da minha barriga.

- Não!

- Então vamos ter – disse ele, sem piscar.

A partir dali se entusiasmou com a idéia. Desembestou e eu não conseguia mais segurá-lo. Esse meu namorado era candidato a jornalista, todo sério, um tipo bem casadoiro. Que aliás, eu sempre gostei de namorar homens assim, casadoiros, sérios, responsáveis. (Os feinhos clandestinos são outra história...)

O cara decretou que íamos ter o filho, morar juntos e casar. Um tio lhe arranjou emprego de bancário e ele começou a procurar apartamento. Já estava falando no convênio para eu ter o nenê. No segundo mês de gravidez, chegou no meu apartamento com um macacãozinho.

- Mas como vou estudar, depois que ele nascer?

-Tranca a matrícula, oras. Eu também vou trancar...

Foi aí que eu entrei em pânico. Na moita, procurei uma amiga minha que já tinha feito aborto. Ela me disse que clínica era ótima, bárbara. Fui atendida por um médico simpático, falei até com psicóloga. Não era tão horrível quanto eu imaginava e eles me garantiram que mais tarde poderia ter todos os bebês que quisesse.

Voltei pra casa depois da operação, apoiada em minha amiga. Eu tinha preparado uma mentira idiota pra contar pro meu namorado, tipo, levei um susto na rua e perdi o bebê. Só não contava que ele estivesse me esperando em casa, todo contente, porque assinara carteira no tal banco e agora tinha direito a convênio.

Assim que me viu, sacou tudo. Ficou branco:

- O que foi que você fez?

Foi uma cena de tragédia grega. Eu ali, mal me aguentando em pé, e ele gritando comigo. Que eu tinha arruinado a sua vida, que era uma vaca mentirosa, uma pessoa péssima. Minha amiga tentou intervir e foi chamada de assassina de bebês.

Depois ele saiu batendo a porta e me deixando em lágrimas.

- Foi melhor assim, consolava minha amiga. Ele não servia pra você.

Levei meses para me recuperar. Me achava a pior pessoa do mundo. Quanta gente não tinha filho em circunstâncias piores! – pensava eu. Ia pro supermercado e via aquelas mães da minha idade levando bebês no carrinho. Me sentia uma monstra, uma bruxa.

Para piorar as coisas, meu namorado não só brigou comigo como saiu da faculdade e nem atendia meus telefonemas. Acho que até pra mãe ele contou a história, porque ela, que antes me adorava, começou a me tratar supermal.

Eu devia mesmo ser uma monstra.

Aí um dia estava sozinha em casa, liguei a televisão e tinha um padre falando contra o aborto. Fiquei ouvindo o sermão do cara. Ele falava sobre a importância da família, a santidade da vida humana e o egoísmo das mulheres malvadas que matam seus bebês por “comodismo”.

Esse padre nem sabe, mas ele salvou minha vida. Comecei a olhar a figura da TV e a pensar. O sujeito nem sabia do que estava falando. Não tinha família pra sustentar. Oficialmente, nunca tinha trepado na vida. Se fizesse tudo pela cartilha da Igreja, quantas mulheres teria conhecido na vida? A mãe? Meia dúzia de freiras?

Ele não tinha a menor idéia do que sente uma mulher nessa situação.

Se tivesse tido aquele bebê, estaria ferrada. Levaria séculos pra terminar a faculdade – se é que terminaria um dia. Ficaria trancada em casa lavando fralda e morrendo de inveja das minhas amigas que estavam na rua. Criaria ódio mortal do meu marido. Perderia os melhores anos da minha vida cuidando de um bebê que provavelmente ia superproteger e transformar num pequeno neurótico.

Tudo isso pra quê? Pra deixar o monsenhor lá da TV contente? Pro meu namorado me achar boazinha e arrumar outra, assim que eu começasse a engordar e ficar chata? Pro meu cérebro encolher até eu começar a assistir o Programa do Gugu? Pra piorar o problema da superpopulação mundial?

Não. Não. Não e não.

Desliguei a TV, enxuguei as lágrimas e fui tratar da minha vida.

Meu namorado nunca mais falou comigo. Trancou a matrícula, entrou para o tal banco e hoje é um executivo como outro qualquer. Não sei, me sinto culpada. Provavelmente privei o jornalismo brasileiro de um grande talento.

Quinze dias depois, fui ao ginecologista para ver se estava tudo certo.

- Tá pronta pra outra – anunciou ele depois do exame.

Nunca mais voltei lá. Gracinha tem limite.


(Troquei meu Destino por Qualquer Acaso)



(Paula Rego - aborto)






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