sábado, 31 de outubro de 2009

O AMIGO DO ZÉ DAS MOÇAS, de José Carlos Sibila Barbosa







Eu não podia dizer que era o meu amigo Zé das Moças quem eu estava vendo ali. Mas que era ele, ah isso lá era. Mas que eu podia dizer que era ele, ah isso lá eu não podia.




Fiquei na dúvida. Se eu digo que era, a cidade inteira vai dizer que eu estou ficando louco, porque eu não posso ter visto que não pode ser visto. Se eu digo que não era, quem vai achar que eu estou ficando louco sou eu mesmo, pois tenho certeza que eu vi que não pode ser visto.




O fantasma, que quando vivo era conhecido por Zé das Moças e era tido como o biruta do lugarejo, conversou comigo e até me falou do seu maior amigo, um canivete que um dia ele ganhou da mulher mais bela do mundo. E o seu mundo era apenas aquele lugar onde nasceu, cresceu, endoidou e morreu.




Nem um único pé para fora dos limites do local o Zé das Moças jamais andou. O que esse defunto biruta me falou, vou deixar para ele mesmo contar, pois, se eu mesmo conto, vão dizer que o biruta sou eu. Na verdade o que eu queria saber do morto que não posso dizer que vi, mas não posso negar ter visto, eu fui logo perguntando.




- Ô Zé, porque em vida você nunca largou o seu canivete amigo?




A resposta me causou mais espanto que a visão do morto, pois que era pura poesia. Poesia que ele não tinha na palavra da vida, mas tinha na vida do morto:




- Este é o meu amigo mais útil – falou-me o fantasma, abrindo as muitas lâminas do seu amigo canivete – Com ele eu divido minhas angústias, vivo momentos de paz... É o companheiro da minha solidão... Um amigo útil... Na verdade a minha primeira intenção foi de explorar esse meu amigão. Então era ele quem dava as primeiras lambidas na laranja azeda à beira do caminho. Frente ao aço duro da tampa da cerveja gelada, era ele que se esforçava no trabalho de liberar o loiro líquido da minha paixão. E se a cana se anunciava bruta, seu Chico, são os seus dentes e não os meus que mais do que depressa a executam... Ah! E se mais valia esse canivete não tem, ainda lhe sobra aquela que vale mais vintém, pois quando eu vejo a bela donzela, é ele que desinibe a minha timidez ao oferecer à cortejada os serviços afiados da tesoura de unhas... Ah! Como era útil esse meu grande amigo... Ele continua funcionando e bem, mas agora não é mais um amigo útil. É apenas amigo.




Dito isso o Zé das Moças desapareceu. Não o vi mais. Nem ele, nem o seu canivete.




Mas se contar esse estranho encontro não posso, e negar que vi seria uma mentira, vou pelo menos imitar o Zé e comprar também um canivete e contarei tudo para ele, chupando laranja azeda à beira do caminho, tomando uma geladinha ou mordendo uma cana. Quem sabe assim eu também encontre a minha donzela para contar minhas estórias.


(Criaturas)






quinta-feira, 29 de outubro de 2009

VISÃO, de Murilo Araújo








Tenho à noite a visão de que as estrelas de ouro

vão descendo ao meu sonho e vêm dançando em coro.


Sinto-as numa nevrose...

numa fascinação... numa alucinação!

Louras, lúcidas, longas, lindas, leves, lentas

-quer agonie ou goze-

eu as sinto nevoentas,

lânguidas e luarentas,

uma por uma dando o pálido clarão!



Uma diz: "Chamo-me Apoteose!"

Outra diz: "Chamo-me Afeição"

Outra é, levíssima, a Confiança,

outra - a Lembrança,

outra - a Ambição...


E assim tenho a visão de que as estrelas de ouro

vêm, dançando, ao meu sonho e vão descendo em coro.


Mas choro de aflição...

pois falta a estrela que procuro em choro,

falta a que foi na terra um vulto louro,

falta a que está no céu, e acha desdouro

descer e iluminar-me o coração!...


(Carrilhões)


(Ilustração: Van Gogh - starry-nigth)





quarta-feira, 28 de outubro de 2009

PRAGA, de Luís Fernando Veríssimo







Um índio, que até então nem sabia que era índio, estendeu a mão e ofereceu a Cristóvão Colombo um tomate.

- Um pomo d’oro! - exclamou o almirante, confundindo o fruto que brilhava ao sol da nova América com uma maçã selvagem. Depois examinou o fruto mais de perto e perguntou:

- Para o que serve?

- Saladas - respondeu o índio. - Refogados. Molhos.

- Para o espaguete! - exclamou Colombo, compreendendo por que o destino o trouxera até ali. Lembrando que seu nono, em Gênova, vivia elogiando Marco Polo por ter trazido o espaguete do Oriente e sua nona vivia dizendo que sim, o espaguete era bom, mas faltava alguma coisa. Sua missão estava revelada: numa só viagem, superara o Marco Polo do nono e descobrira o que faltava na macarronada da nona. Ficou com o tomate.

- O que você me dá em troca? - quis saber o índio.

Não se sabe que língua falavam. A linguagem mágica dos grandes encontros. Não interessa.

- Dou em troca um dos produtos supremos de nossa civilização. Uma preciosidade. Um dos frutos da indústria que breve chegará aqui e transformará este mato em outra Europa.

E Colombo deu uma miçanga ao índio.

Colombo perguntou que outra novidade o índio tinha para lhe dar. E o índio ofereceu uma batata.

- O que faremos com isto? - perguntou Colombo, olhando a feia batata com pouco entusiasmo.

O índio descreveu o futuro da batata, desde a sua importância na alimentação dos camponeses europeus em fomes ainda por vir até a “noisette” e as fritas. E Colombo botou a batata na algibeira e deu em troca uma moedinha de valor tão baixo, que em vez da cara mostra o joelho do rei. O que mais o índio tinha para lhe dar?

O fruto do cacaueiro, de onde sairia o chocolate. O índio descreveu o significado do chocolate para a história do mundo, especialmente da Suíça e da Bahia, e como seriam os bombons, e as barras recheadas com avelãs, e suspeita-se que tenha mencionado até a mousse. E Colombo trocou o cacau por um espelhinho. Que mais?

Fumo! Em breve, todos estariam experimentando as delícias do tabaco e o novo hábito dominaria o mundo. E para quem quisesse um barato ainda maior, o índio incluía a planta da coca junto com a planta do fumo em troca das contas que Colombo lhe oferecia. Que mais?

Milho. Aipim. Um papagaio.

- E isso que você tem no nariz? - perguntou Colombo, apontando para a argola de ouro.

- O que você me dá em troca?

Colombo ofereceu mais miçangas, que o índio não quis. Outra moedinha. Comprimidos. Vale transporte. Finalmente apontou sua pistola para a cabeça do índio e disse “Isto”. E disparou. Depois deu ordens a seus homens para recolher todo o ouro à vista, mesmo que tivessem que trazer os narizes juntos.

Do chão, antes de morrer, o índio amaldiçoou Colombo e praguejou. Que a batata tornasse a sua raça obesa, que o chocolate enchesse as suas artérias de colesterol, que o fumo lhe desse câncer, que a cocaína o enlouquecesse e que o ouro destruísse a sua alma. E que o tomate - pediu o índio aos céus, com seu último suspiro - se transformasse em ketchup e molho enlatado sem graça que estragasse o espaguete para todo o sempre. E assim aconteceu.




(OESP - 1.10.95)



(Ilustração: Andy Warhol)






terça-feira, 27 de outubro de 2009

THE ECSTASY/O ÊXTASE, de John Donne









Where, like a pillow on a bed
A pregnant bank swell'd up to rest
The violet's reclining head,
Sat we two, one another's best.

Our hands were firmly cemented
With a fast balm, which thence did spring;
Our eye-beams twisted, and did thread
Our eyes upon one double string;

So to'intergraft our hands, as yet
Was all the means to make us one,
And pictures in our eyes to get
Was all our propagation.

As 'twixt two equal armies fate
Suspends uncertain victory,
Our souls (which to advance their state
Were gone out) hung 'twixt her and me.

And whilst our souls negotiate there,
We like sepulchral statues lay;
All day, the same our postures were,
And we said nothing, all the day.

If any, so by love refin'd
That he soul's language understood,
And by good love were grown all mind,
Within convenient distance stood,

He (though he knew not which soul spake,
Because both meant, both spake the same)
Might thence a new concoction take
And part far purer than he came.

This ecstasy doth unperplex,
We said, and tell us what we love;
We see by this it was not sex,
We see we saw not what did move;

But as all several souls contain
Mixture of things, they know not what,
Love these mix'd souls doth mix again
And makes both one, each this and that.

A single violet transplant,
The strength, the colour, and the size,
(All which before was poor and scant)
Redoubles still, and multiplies.

When love with one another so
Interinanimates two souls,
That abler soul, which thence doth flow,
Defects of loneliness controls.

We then, who are this new soul, know
Of what we are compos'd and made,
For th' atomies of which we grow
Are souls. whom no change can invade.

But oh alas, so long, so far,
Our bodies why do we forbear?
They'are ours, though they'are not we; we are
The intelligences, they the spheres.

We owe them thanks, because they thus
Did us, to us, at first convey,
Yielded their senses' force to us,
Nor are dross to us, but allay.

On man heaven's influence works not so,
But that it first imprints the air;
So soul into the soul may flow,
Though it to body first repair.

As our blood labors to beget
Spirits, as like souls as it can,
Because such fingers need to knit
That subtle knot which makes us man,

So must pure lovers' souls descend
T' affections, and to faculties,
Which sense may reach and apprehend,
Else a great prince in prison lies.

To'our bodies turn we then, that so
Weak men on love reveal'd may look;
Love's mysteries in souls do grow,
But yet the body is his book.

And if some lover, such as we,
Have heard this dialogue of one,
Let him still mark us, he shall see
Small change, when we'are to bodies gone.

Tradução de Augusto de Campos:


Onde, qual almofada sobre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta,
Nós nos sentamos, olhar contra olhar.

Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;

Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.

Como entre dois exércitos iguais,
Na incerteza, o Acaso se suspende,
Nossas almas (dos corpos apartadas
Por antecipação) entre ambos pendem.

E enquanto alma com alma negocia,
Estátuas sepulcrais ali quedamos
Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia.

Se alguém - pelo amor tão refinado
Que entendesse das almas a linguagem,
E por virtude desse amor tornado
Só pensamento - a elas se chegasse,

Pudera (sem saber que alma falava
Pois ambas eram uma só palavra),
Nova sublimação tomar do instante
E retornar mais puro do que antes.

Nosso Êxtase - dizemos - nos dá nexo
E nos mostra do amor o objetivo,
Vemos agora que não foi o sexo,
Vemos que não soubemos o motivo.

Mas que assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas.

Transplanta a violeta solitária:
A força, a cor, a forma, tudo o que era
Até aqui degenerado e raro
Ora se multiplica e regenera.

Pois quando o amor assim uma na outra
Interanimou duas almas,
A alma melhor que dessas duas brota
A magra solidão derrota,

E nós que somos essa alma jovem,
Nossa composição já conhecemos
Por isto: os átomos de que nascemos
São almas que não mais se movem.

Mas que distância e distração as nossas!
Aos corpos não convém fazermos guerra:
Não sendo nós, não convém fazermos guerra:
Inteligências, eles as esferas.

Ao contrário, devemos ser-lhes gratas
Por nos (a nós) haverem atraído,
Emprestando-nos forças e sentidos.
Escória, não, mas liga que nos ata.

A influência dos céus em nós atua
Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.

Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,

Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.

Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.

Se alguém - amante como nós - tiver
Esse diálogo a um ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.





(llustração: A,Andrew Gonzalez - alchemico d'amore)




segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A EMPRESA ESCRAVISTA, de Darcy Ribeiro






A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compressão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois, para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação dos seus interesses.

O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de autorreconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito frequente, ou da fuga, mais frequente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia até ser alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil.

Uma morte prematura numa tentativa de fuga era melhor, quem sabe, que a vida do escravo trazido de tão longe para cair no inferno da existência mais penosa. Sentindo que é violentado, sabendo que é explorado, ele resiste como lhe é possível. “Deixam de trabalhar bem se não forem convenientemente espancados”, diz um observador alemão, “e se desprezássemos a primeira iniquidade a que os sujeitou, isto é, sua introdução e submissão forçada, devíamos de considerar em grande parte os castigos que lhes impõem os seus senhores” (Davatz 1941:62-3). Aí está a racionalidade do escravismo, tão oposta à condição humana que uma vez instituído só se mantém através de uma vigilância perpétua e da violência atroz da punição preventiva.

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro - mercador africano de escravos - para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por mês e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão.

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém - seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos -, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade igualitária.



(O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil)




(Ilustrração: Di Cavalcanti)





domingo, 25 de outubro de 2009

NADA FICA, de Ricardo Reis








Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.


(Odes)



(Ilustração: Érika Cardoso)




sábado, 24 de outubro de 2009

COMICHÃO PELO TEATRO, de David Sedaris










O homem foi mandado para a nossa classe a fim de nos inspirar e, por mim, acredito que fez um excelente trabalho. Após de apresentar de forma tranquila e cordial, dirigiu-se ao fundo da sala só para ser impedido, no meio do caminho, pelo que começamos a conhecer como “a parede invisível”, aquela barreira transparente, percebida apenas por psicóticos, viciados em drogas e outros membros do mundo dos espetáculos.

Fiquei fascinado enquanto ele se aprumava e investigava a parede imaginária, passando as mãos abertas sobre a superfície aparentemente dura, na esperança de encontrar uma saída. Após alguns momentos, puxava uma corda invisível e lutava contra ventos fantásticos, violentos. 

Você se dá conta de que mora em uma cidade pequena quando chega à oitava série sem nunca ter visto um mímico. Para mim, aquele homem era um profeta, um gênio, um pioneiro no campo do entretenimento – e aqui estava ele, em Raleigh, na Carolina do Norte! Foi hilariante sua imitação da professora, abaixando os cantos da boca e revirando a bolsa imaginária à procura de um chiclete e de uma aspirina. Aquele cara era muito engraçado! 

Voltei para casa e mostrei a parede invisível a meu irmão de dois anos, que socava a parede verdadeira ao lado de seu cercadinho, gritando e gemendo de raiva. Quando minha mãe perguntou o que eu fizera para provocá-lo, ergui as mãos em inocente zombaria, antes de abaixá-las para pegar o bebê imaginário que fazia bagunça a meus pés. Dei leves tapinhas nas costas do meu fantasminha a fim de induzir o arroto e estava examinando a fralda suja quando vi minha mãe assumir a expressão reservada apenas ao horror indizível. Vira aquele olhar apenas duas vezes: uma, quando foi surpreendida no quintal por um porco raivoso, arremetendo contra ela, e a outra, quando lhe disse que queria um casaco de veludo cor de pêssego, com as calças combinando. 

“Não sei quem incentivou você”, ameaçou, “mas eu me mato antes de vê-lo crescer e se tornar um palhaço. Se quiser pintar o rosto e sair rebolando pelas esquinas, terá de encontrar um outro lugar para morar, porque não vou de jeito nenhum deixar você viver na minha casa”. Estava saindo, quando acrescentou, “nem no meu quintal.” 

Com medo de retaliação, obedeci, encerrando minha carreira de mímico com um suspiro, em vez do silêncio de grande efeito que desejava. 

O ator visitante voltou à nossa sala alguns meses depois, tirando o sobretudo para revelar uma atadura compressiva preta, usada com um colar cervical acinzentado, resultado de um acidente recente de carro. A tarefa daquela tarde era nos iniciar nas obras de William Shakespeare e, mais uma vez, fiquei completamente fascinado pelo seu charme e habilidade. Quando as palavras começavam a ficar confusas, bastava prestar atenção ao rosto e às mãos do ator para compreender que aquele personagem específico não estava apenas furioso, mas também vingativo. Eu amava a habilidade subjacente a esta língua ilusoriamente bela. Parecia uma vergonha que as pessoas não falassem mais daquela forma, e comecei uma campanha pela reintrodução do inglês elisabetano aos cidadãos da Carolina do Norte. 

“Porventura, gentil senhora, pensais que estou injustificadamente apoquentado pela lamentável condição de vossos aposentos?”, perguntei à minha mãe, enquanto passava o aspirador de pó no carpete da sala de estar, já que ela sofria de uma preguiça visceral para se preocupar com isso. “Estas torpes manchas, a própria evidência da vida, macularam-vos não apenas o capacho de têmpera áspera como também o caráter. Estais ensandecida, mulher? Fosse crime punível negligenciar vossa morada, vós, minha ama de espírito débil, seríeis pendurada na árvore mais alta em penitência por tais hábitos vergonhosos. Não tendes vestes a lavar e passar em quietude? Não vedes os pratos de porcelana e as canecas generosas esperando serem limpas das manchas? Engendrai vosso trabalho, abominável dama, e sede célere, antes que os frutos de vosso próprio ventre ergam, juntos, os punhos, imbuídos de ira e indignação, impetuosamente extraindo, à força, o último suspiro da venenosa garganta que vosso pescoço altivo e ereto encerra. Ide agora, mandriona, fazei-o!” 

Minha mãe reagiu como se eu a tivesse chicoteado com um pequeno novelo de lã. A intenção era evidente, mas a arma, estranha e inadequada. Eu sabia, pelo estado do meu quarto, que ela tinha passado o dia seguinte procurando drogas na minha cômoda. As roupas, que me orgulhava em dobrar cuidadosamente, estavam socadas nas gavetas, sem a menor preocupação com cor ou categoria. Senti o cheiro de cigarros e percebi as manchas de café na escrivaninha. Minha mãe havia sido agraciada com a absolvição em várias outras ocasiões, mas desarrume minhas gavetas e havereis conquistado um inimigo eterno. Amarrando uma pluma na tampa da minha caneta esferográfica, rebusquei carta para ela. “Aquilo que procurais tão desesperadamente”, escrevi, “não reside em meus aposentos tão bem ordenados, mas no questionável conteúdo de vosso próprio caráter.” Coloquei o bilhete em sua bolsa, dobrado duas vezes e lacrado com a parafina das velas que agora usava para iluminar o quarto. Comecei a ficar emburrado, recusando-me a mudar, até que ganhei uma cópia das obras completas de Shakespeare. Depois que foram compradas, descobri que eram complicadas e difíceis de entender. Ao ler as palavras, eu me sentia embotado e burro, mas ao pronunciá-las, considerava-me poderoso. Achei melhor simplesmente levar o livro comigo de quarto em quarto, de vez em quando passando os olhos por palavras engraçadas que pudesse acrescentar ao meu sempre doce vocabulário. A hora do jantar tornou-se insuportável ou excruciante, dependendo do meu humor. “Parece-me, amável senhor, gentilíssima senhora, caros irmãos, que esta ave é mui mais saborosa e suculenta, tendo cozido em seus próprios sucos, por tanto tempo quanto leva o sol para cruzar o céu plúmbeo, no curso de uma hora de crepúsculo, até ficar rosada e nédia. Crocante, conquanto úmida, esta ave roliça contentava-se na companhia de outras iguarias tão primorosamente assadas. Ouvi-me, gentis parentes, prestai atenção a minhas palavras, pois creio também ser arriscado e caprichoso selar meu garfo com ambos, ave e cenoura, a um só tempo, os sucos gêmeos misturando-se em delicada harmonia que adula e aviva minha língua, em espírito de júbilo incontido! O que sugeriríeis vós, distinto pai, irmãs e irmão infante, que levantássemos nossas taças em brinde a este festim opíparo, preparado com amor e suprema graça por essa mulher obsequiosa a quem temos a ventura de chamar de esposa, amante ou mãe?” 

Meu entusiasmo não tinha limites. Logo minha mãe estava literalmente suplicando para que eu ficasse no carro, enquanto ela ia ao banco ou à mercearia. 

Eu estava no consultório do ortodontista, muito aborrecido com a prática da odontologia, quando o ator visitante voltou à nossa classe. 

“Pena você ter perdido”, minha amiga Lois comentou. “O homem era tão indescritivelmente impressionante que quase chorei, de tão brilhante que era.” Ela mostrava as mãos como se carregasse uma bandeja. “Não sei o que mais posso dizer. Simplesmente não existem palavras. Poderia tentar explicar a autenticidade dele, mas você nunca seria capaz de entender. Nunca”, repetiu. “Nunca, nunca, nunca.” 

Lois e eu éramos amigos havia seis meses quando nosso relacionamento subitamente ganhou um caráter competitivo. Nunca me importara com quem conseguia notas mais altas ou mesada maior. Cada um de nós tinha seus pontos fortes, o mais importante era respeitar-nos um ao outro no que fazíamos de melhor. Lois agüentava tomar mais Chablis do que eu e a respeitava por isso. Seu apavorante excesso de autoconfiança permitia-lhe marchar para a escola usando uma peruca afro cor de ferrugem, e eu lhe dava apoio integral. Tinha mais discos do que eu e como era nove meses mais velha, também sabia dirigir e o fazia como se estivesse correndo para apagar um incêndio. Ótimo, pensei, sorte dela. Minha superior sabedoria e generosidade inata permitiram-me ficar feliz de verdade por Lois, até o dia em que questionou minha capacidade de entender o ator visitante. Nas primeiras vezes em que ele se apresentara, Lois havia se comportado exatamente como o restante da classe, rindo de seu colar cervical e revirando os olhos ao ver a protuberância do tamanho de uma tangerina entre as suas coxas. Eu fora o primeiro a perceber seu brilhantismo, e agora ela dizia que eu não conseguiria entendê-lo? Quer crer que não. 

“Honestamente, mulher”, afirmei à minha mãe, a caminho da lavanderia, “pensar que esse desprezível verme pudesse me falar de grandeza como se me fora invisível, é maio do que posso suportar. Suas palavras atingem-me o coração com a força de um golpe cruel, deixando-me tão aturdido quanto envergonhado. Não obstante, ouvi-me, pois ganharei tempo silenciosa e astutamente e revidarei no exato momento em que ela menos esperar. Tal afronta não passará sem desagravo, disso podereis ficar descansada, gentil dama. Minha vingança terá o doce gosto da infrutescência mais madura e hei de saboreá-la aos poucos.” 

“Você vai superar essa fase”, minha mãe respondeu. “Tenho certeza de que, em algumas semanas, tudo estará de volta ao normal. Vou entrar agora para buscar as camisas de seu pai e quero que você espere aqui, no carro. Acredite-me, tudo isso logo será esquecido.” 

Essa se tornara sua resposta para tudo. Ela havia feito uma investigação e concluído que eu fora contaminado pelo que sua irmã chamava de “comichão pelo teatro”. Minha mãe estava convencida de que era uma fase, exatamente como todas as outras. Algumas semanas de quixotismo, e eu deixaria o mundo dos espetáculos, tal como deixara o violão e minha agência de detetives particulares. Odiava ver minhas ambições de vida reduzidas à categoria de um simples resfriado. Havia em mim um vírus maduro. Talvez ficasse dormente por alguns anos, mas jamais deixaria meu corpo. 




(Pelado, tradução de Sarita Lopes)



(Ilustração: Degas - dance class)







sexta-feira, 23 de outubro de 2009

INCERTEZA, de Eberth Alvarenga









Se não fosse aqui o duro chão,
te daria nuvens
de um céu havido,
consumido pela luz,
de um tempo que doa amores
incertos de encantos.



(Desafins)


(Ilustração: Amy Race)



quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A DESCOBERTA DA AMÉRICA, de Tzvetan Todorov









Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso. Mal acabamos de formulá-lo em linhas gerais já o vemos subdividir-se em categorias e direções múltiplas, infinitas. Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Esse grupo, por sua vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie. Escolhi esta problemática do outro exterior, de modo um pouco arbitrário, e porque não podemos falar de tudo ao mesmo tempo, para começar uma pesquisa que nunca poderá ser concluída.



Mas como falar disso? No tempo de Sócrates, o orador costumava perguntar ao auditório qual o seu modo de expressão, ou gênero preferido: o mito, isto é, a narração, ou a argumentação lógica? Na época do livro, a decisão não pode ser tomada pelo público. A escolha teve de ser feita para que o livro existisse. Temos de nos contentar em imaginar, ou desejar, um público que teria dado tal resposta, e não outra, e em escutar aquela sugerida ou imposta pelo próprio assunto. Escolhi contar uma história. Mais próxima do mito do que da argumentação, mas distinta em dois planos: em primeiro lugar, é uma história verdadeira (o que o mito podia mas não devia ser), e, em segundo lugar, meu interesse principal é mais o de um moralista do que o de um historiador. O presente me importa mais do que o passado. Não tenho outro meio de responder à pergunta do como se comportar em relação a outrem a não ser contando uma história exemplar (este é o gênero escolhido), uma história tão verdadeira quanto possível,mas tentando nunca perder de vista aquilo que os exegetas da Bíblia chamavam de sentido tropológico, ou moral. Neste livro se alternarão, um pouco como num romance, os resumos, ou visões de conjunto resumidas, as cenas, ou análises detalhadas recheadas de citações, pausas, onde o autor comenta o que acaba de acontecer, e, é claro, elipses, ou omissões frequentes. Não é esse o ponto de partida de toda história?



Entre os vários relatos que temos à disposição, escolhi um: o da descoberta e conquista da América. Por conveniência, estabeleci uma unidade de tempo – os cem anos que seguem a primeira viagem de Colombo, isto é, basicamente, o século XVI. Estabeleci também uma unidade de espaço – a região do Caribe e do México, chamada às vezes de Meso-América, e, finalmente, uma unidade de ação – a percepção que os espanhóis têm dos índios será meu único assunto, com uma única exceção, no caso de Montezuma e os seus.



Duas razões fundamentaram a escolha deste tema como primeiro passo no mundo da descoberta do outro. Em primeiro lugar, a descoberta da América, ou melhor, dos americanos, é sem dúvida o encontro mais surpreendente de nossa história. Na “descoberta” dos outros continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de estranheza. Os europeus nunca ignoraram totalmente a existência da África, ou da Índia, ou da China, sua lembrança esteve sempre presente, desde as origens. A Lua é mais longe do que a América, é verdade, mas hoje sabemos que aí não há encontro, que esta descoberta não guarda surpresas da mesma espécie. Para fotografar um ser vivo na Lua, é necessário que o cosmonauta se coloque diante da câmera, e em seu escafandro há um só reflexo: o de um outro terráqueo. No início do século XVI, os índios da América estão ali, bem presentes, mas deles nada se sabe, ainda que, como é de se esperar, sejam projetadas sobre os seres recentemente descobertos imagens e idéias relacionadas a outras populações distantes. O encontro nunca mais atingirá tal intensidade, se é que esta é a palavra adequada. O século XVI veria perpetrar-se o maior genocídio da história da humanidade.



Mas não é unicamente por ser um encontro extremo, e exemplar, que a descoberta da América é essencial para nós, hoje. Além deste valor paradigmático, ela possui outro, de causalidade direta. A história do globo é, claro, feita de conquistas e derrotas, de colonizações e descobertas dos outros; mas, como tentarei mostrar, é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente. Apesar de toda data que permite separar duas épocas ser arbitrária, nenhuma é mais indicada para marcar o início da era moderna do que o ano de 1492, ano em que Colombo atravessa o Oceano Atlântico. Somos todos descendentes diretos de Colombo, é nele que começa nossa genealogia – se é que a palavra começo tem um sentido. Desde 1492 estamos, como disse Las Casas, “neste tempo tão novo e a nenhum outro igual” (Historia de las Indias, I, 88). A partir desta data, o mundo está fechado (apesar de o universo tornar-se infinito). “O mundo é pequeno”, declarará peremptoriamente o próprio Colombo (Carta Rarissima, 7.7.1503). Os homens descobriram a totalidade de que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo. Este livro será u ma tentativa de entender o que aconteceu neste dia, e durante o século seguinte, através da leitura de alguns textos cujos autores serão minhas personagens. Estes monologarão, como Colombo, dialogarão através de atos, como Cortez e Montezuma, ou através de enunciados eruditos, como Las Casas e Sepulveda, ou ainda, como Durán e Sahagún, manterão um diálogo, menos evidente, com interlocutores índios.


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(A Conquista da América – A Questão do Outro, tradução de Beatriz Perrone Moisés)


(Ilustração: Fritz Aigner)


quarta-feira, 21 de outubro de 2009

HERESIAS DE MENOCCHIO, de Carlo Ginzburg









Começou denunciando a opressão dos ricos contra os pobres através do uso de uma língua incompreensível como o latim nos tribunais: “Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e sã enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado”. Mas esse era só um exemplo de uma exploração geral, da qual a Igreja era cúmplice e participante: “E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres. Se têm dois campos arrendados, esses são da Igreja, de tal bispo ou de tal cardeal”. É bom lembrar que Menocchio possuía dois campos arrendados, cujo proprietário ignoramos; quanto ao seu latim, aparentemente se restringia ao Credo e o Pater noster, que aprendera ajudando na missa, e que Ziannuto, seu filho, fora atrás de um advogado logo que o Santo Ofício o colocara na prisão. Porém, essas coincidências, ou possíveis coincidências, não nos devem levar a pistas falsas: o discurso de Menocchio, embora partisse do seu caso pessoal, acabava por abarcar um âmbito muito mais vasto. A exigência de uma Igreja que abandonasse seus privilégios, que se fizesse pobre como os pobres, ligava-se à formulação, na esteira dos Evangelhos, de um conceito diferente de religião, livre de exigências dogmáticas, resumível a um núcleo de preceitos práticos: “Gostaria que se acreditasse na majestade de Deus, que fôssemos homens de bem e que se fizesse como Jesus Cristo recomendou, respondendo àqueles judeus que lhe perguntaram que lei se deveria seguir. Ele respondeu: ‘Amar a Deus e ao próximo’”... Uma tal religião simplificada não admitia, para Menocchio, limitações confessionais. Contudo, a apaixonada exaltação da equivalência de todas as fés, com base na iluminação concedida, em igual medida, a todos os homens – “A majestade de Deus distribuiu o Espírito Santo para todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus, tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão” –, acabou numa explosão violenta contra os juízes e sua soberba doutrinal: “E vocês, padres e frades, querem saber mais do que Deus; são como o demônio, querem passar por deuses na terra, saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio. Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe”. E, abandonando toda reserva, toda prudência, Menocchio declarou recusar todos os sacramentos, inclusive o batismo, por serem invenções dos homens, “mercadorias”, instrumentos de exploração e opressão por parte do clero: “Acho que a lei e os mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso”. Sobre o batismo comentou: “Acho que, quando nascemos, já estamos batizados, porque Deus, que abençoou todas as coisas, já nos batizou. O batismo é uma invenção dos padres, que começam a nos comer a alma antes do nascimento e vão continuar comendo-a até depois da morte”. Sobre a crisma: “Acho que é uma mercadoria, invenção dos homens; todos os homens têm o Espírito Santo e buscam saber tudo e não sabem nada”. Sobre o casamento: “Não foi feito por Deus, mas sim pelos homens; antes, homens e mulheres faziam troca de promessas e isso era suficiente; depois apareceram essas invenções dos homens”. Sobre a ordenação: “Acho que o Espírito Santo está em todo mundo, [...] e acho que qualquer um que tenha estudado pode ser sacerdote, sem ter que ser sagrado, por que tudo isso é mercadoria”. Sobre a extrema-unção: “Acho que não é nada, não vale nada, porque se unge o corpo, mas o espírito não pode ser ungido”. Geralmente se refira à confissão dizendo: “Ir se confessar com padres ou frades é a mesma coisa que falar com uma árvore”. Quando o inquisidor lhe repetiu essas palavras, explicou, com uma pontinha de autossuficiência: “Se esta árvore conhecesse a penitência, daria no mesmo; alguns homens procuram os padres porque não sabem que penitências devem ser feitas para seus pecados, esperando que os padres as ensinem, mas, se eles soubessem, não teriam necessidade de procurá-los”. Estes últimos deveriam se confessar “à majestade de Deus em seus corações e pedir-lhe perdão pelos seus pecados”.



Somente o sacramento do altar escapava às críticas de Menocchio – mas era reinterpretado de maneira heterodoxa. As frases referidas pelos testemunhos soavam, na verdade, como blasfêmias ou negações depreciativas. Quando procurou o vigário de Polcenigo, num dia de distribuição de hóstias, Menocchio exclamou: “Pela Virgem Maria, são muito grandes essas bestas!”. Numa outra vez, discutindo com o padre Andrea Bionima, disse: “Não vejo ali nada mais que um pedaço de massa. Como é que pode ser Deus? E o que é esse tal Deus a não ser terra, água e ar?”. Mas ao vigário-geral explicou: “Eu disse que aquela hóstia é um pedaço de massa, mas que o Espírito Santo vem do céu e está nela. Eu realmente acredito nisso”. O vigário perguntou incrédulo: “O que você acha que seja o Espírito Santo?”. Menocchio respondeu: “Acho que é Deus”. Mas sabia quantas eram a s pessoas da Trindade? “Sim, senhor: Pai, Filho e Espírito Santo”. “Em qual dessas três pessoas você acha que a hóstia se converte?” “Acho que no Espírito Santo.” Semelhante ignorância parecia inacreditável para o vigário: “Quando o pároco fez os sermões sobre o santíssimo sacramento, quem ele disse que estava naquela hóstia?”. Porém, não se tratava de ignorância: “Disse que era o corpo de Cristo, embora eu achasse que era o Espírito Santo, e isso porque acho que o Espírito Santo é maior que Cristo, que era homem, enquanto o Espírito Santo veio pelas mãos de Deus...”. “Disse [...] embora eu achasse”: apenas lhe era apresentada a ocasião, Menocchio confirmava quase com insolência a própria independência de julgamento, o direito de ter uma posição autônoma. E acrescentou para o inquisidor: “O bom do sacramento é quando alguém se confessa e vai comungar; então está com o Espírito Santo, e o Espírito Santo está alegre [...]; quanto ao sacramento da eucaristia, é uma coisa feita para controlar os homens, inventada pelos homens graças ao Espírito Santo; a celebração da missa é uma criação do Espírito Santo, assim como adorar a hóstia par que os homens não sejam como animais”. A missa e o sacramento do altar eram, portanto, justificados de um ponto de vista quase político, como meio de civilidade – todavia, numa frase que lembrava involuntariamente, como signo invertido, o que tinha dito ao vigário de Polcenego (hóstias [...] bestas”).






(O Queijo e os Vermes: o Cotidiano e as Idéias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição, tradução de Maria Betânia Amoroso).






(Ilustração: políptico de São Vicente, de Nuno Gonçalves)






terça-feira, 20 de outubro de 2009

POEM / POEMA, de Thomas Campion









Will I now so timely depart
And not return again?
Your life lends such light to my heart
That to depart is pain.


Fear yields no delay,
Secureness helpeth pleasure.
Then, till time give greater stay,
Farewell, my life’s treasure!


Follow thy fair sun, unhappy shadow,
Though thou be dark as night
And she made all of light,
Yet follow thy fair sun, unhappy shadow.





Tradução de Isaias Edson Sidney:




Fugiu-se-me o tempo e devo deixar-te.
Não mais voltarei?
É tanta a luz que me fez amar-te
Quanta é a dor que sentirei.


Seguro de estar contigo,
Prolonga o medo ao prazer.
Dou-te adeus, ó meu tesouro, e prossigo
A sonhar um tempo de permanecer!


Vai-te em dourada luz, ó sombra triste,
Ainda que cubras o sol em negra treva.
Deixa-me luz na luz que te leva:
Segue o teu sol, ó sombra que em mim persiste.




(Ilustração: Casper David Friedrich)