terça-feira, 8 de setembro de 2009

CAMINHO, de Camilo Pessanha







I


Tenho sonhos cruéis; n’alma doente

Sinto um vago receio prematuro.

Vou a medo na aresta do futuro,

Embebido em saudades do presente...




Saudades dessa dor que em vão procuro

Do peito afugentar bem rudemente,

Devendo, ao desmaiar sobre o poente,

Cobrir-me o coração dum véu escuro!...



Porque a dor, esta falta d’harmonia,

Toda a luz desgrenha que alumia

As almas doidamente, o céu d’agora,



Sem ela o coração é quase nada:

Um sol onde expirasse a madrugada,

Porque é só madrugada quando chora.


II


Encontraste-me um dia no caminho

Em procura de quê, nem eu sei.

- Bom dia, companheiro, te saudei,

Que a jornada é maior indo sozinho.



É longe, é muito longe, há muito espinho!

Paraste a repousar, eu descansei...

Na venda em que poisaste, onde poisei,

Bebemos cada um do mesmo vinho.



É no monte escabroso, solitário.

Corta os pés como a rocha dum calvário,

E queima como a areia!... Foi no entanto



Que choramos a dor de cada um...

E o vinho em que choraste era comum:

Tivemos que beber do mesmo prato.



III


Fez-nos bem, muito bem, esta demora:

Enrijou a coragem fatigada...

Eis os nossos bordões da caminhada,

Vai já rompendo o sol: vamos embora.



Este vinho, mais virgem do que a aurora,

Tão virgem não o temos na jornada...

Enchamos as cabaças: pela estrada,

Daqui inda este néctar avigora!...



Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,

Eu quero arrostar só todo o caminho,

Eu posso resistir à grande calma!...



Deixai-me chorar mais e beber mais,

Perseguir doidamente os meus ideais,

E ter fé e sonhar – encher alma.



Janeiro, 1888.


(Clepsidra)


(Ilustração: Casper David Friedrich)


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